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A figura na solidão

  • Foto do escritor: anfetaminadialetica
    anfetaminadialetica
  • 4 de jul. de 2024
  • 2 min de leitura

Atualizado: 5 de mai.

Um mini conto de terror




Envolta por farrapos, a sorumbática figura quando em vez virava para olhar a sua volta, como se temesse ser flagrada. As órbitas, incrustadas na face deformada, certa hora voltaram-se na minha direção, revelando os olhos sem vida, impactando-me de pronto. Dobrada sobre a própria cerviz, ela se assemelhava a um animal cavando o chão, como se buscasse desenterrar algo. Testemunhei de longe o que talvez nunca fosse para ser presenciado. Com esforço, no breu provocado pela queima das luzes halógenas daquela rua deserta, os movimentos da criatura pareciam esboços estéreis. Imerso na treva urbana, pude reconhecer o que costumam chamar despacho, oferenda, algo da macumba para os leigos.


O vulto personificado remeteu a algo de Olhos famintos, o primeiro, e pude compreender o sentido. Tomei coragem para cometer o ato insano. Fui me aproximando, até que muito perto do ser arqueado, claramente à beira de não mais existir, estaquei. Estávamos separados por poucos metros. Eu não me recordo se emiti uma palavra, uma frase, construída com sintaxe tresloucada.


Embalsamado naquele corpo esquálido, aparentemente compactado pelos anos, era como se emanasse uma energia macabra e uma tristeza secular de uma só vez, contaminando tudo ao redor. O esforço que cometi foi comparável ao de quem tivesse a curiosidade mórbida de saber de quem se tratava, mas que por dentro clamava para não ser alguém de quem se lembrasse, o que poderia ser chamado de ato temerário. Inútil foi a tentativa de adivinhação. Para quem tivesse o mesmo ímpeto de chegar tão próximo, teria como eu o encontro não marcado com o grotesco, com o inumano, com o ignominioso.


Entre sussurro, balbucio ou silêncio revestidos de pavor, mirei a entidade. Homem, mulher, trans, não sei. O que pude depreender daquele episódio foi mais uma vez o sentido abissal do vocábulo fome. A criatura engolia vorazmente o conteúdo da oferenda, e em momento algum pareceu perceber minha presença.


Antes que terminasse, fui me afastando lentamente. Em certo ponto, quando me senti aparentemente seguro de minha integridade física e espiritual, corri para longe.

Até hoje, passados anos, sou perseguido por aquele ser em sonhos nefastos. Acordo atribulado, com o coração palpitante, cada vez sou mais solidário à dor humana, e continuo por formação a me julgar um cidadão ilibado, incapaz de fazer mal a um semelhante.


Waldir Barbosa Jr.

@anfetaminadialetica

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2 Comments


nilosenacrj
Jul 05, 2024

Muito bom

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anfetaminadialetica
anfetaminadialetica
Jul 23, 2024
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Obrigado primo Nilo.

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© 2019 por  Waldir Barbosa Jr - Criador do Anfetamina Dialética - Blog Cultural.

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