A figura na solidão
Atualizado: 23 de jul.
Um mini conto de terror
A figura, vestida por farrapos, olhava para todos os lados. As órbitas, incrustadas na face deformada, foi o que primeiro me impactou. Dobrada sobre a própria cerviz, parecia óbvio não querer ser vista. Olhei de relance o que talvez nunca fosse para ser testemunhado. Com esforço, no breu provocado pela queima das luzes halógenas daquela rua triste e deserta, os movimentos da criatura pareciam esboços estéreis. Envolto pela treva urbana, pude reconhecer o que costumam chamar despacho, oferenda, algo da macumba para os leigos.
O vulto personificado me remeteu a algo de Olhos famintos, o primeiro, e eu pude afinal compreender o que o termo significava de fato. Eu tive coragem para cometer o ato insano. Fui me achegando, até que muito próximo do ser arqueado, claramente à beira de não mais existir, por milímetros quase o toquei. Eu não me recordo se emiti uma palavra, uma frase pela metade, construída com uma sintaxe tresloucada. Embalsamado naquele corpo esquálido, aparentemente compactado pelos anos, era como se ele emanasse uma energia macabra e uma tristeza secular de uma só vez, contaminando ao redor. O esforço que cometi foi comparável ao de quem tivesse a mesma morbidez ou curiosidade de saber de quem se tratava, mas que por dentro clamava para não ser alguém de quem me lembrasse, o que em suma poderia ser chamado de ato temerário. Porém, foi inútil a tentativa de adivinhação. Para quem tivesse o mesmo ímpeto de chegar mais perto certamente iria se deparar não com o grotesco, mas com o humano, e a surpresa só poderia ser a que presenciei.
Entre palavra, balbucio ou silêncio revestido de pavor, pude enfim entender que se tratava de uma entidade humana. Homem, mulher, trans, não sei. O que pude de maneira definitiva apreender foi o sentido do vocábulo fome. Mas ao invés de ser solidário, de humana e elogiável intenção, eu fui me afastando, andando para trás lentamente. Em certo ponto, quando me senti aparentemente seguro de minha integridade espiritual e física, corri para longe. No entanto, foi um gesto vazio. Até hoje, passados meses, o conjunto de imagens amedrontadoras me persegue em sonhos nefastos. Eu continuo por formação a me julgar um cidadão ilibado, incapaz de fazer mal a alguém.
Barbosa Jr.
@anfetaminadialetica
Muito bom