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A insuspeita Confissão de Machado

Atualizado: 11 de set. de 2022

Conto originalmente publicado em "Um Rio chamado Futebol"


“Mudaria o Natal ou mudei eu?”
Soneto de Natal, Machado de Assis

Mal terminou o verso, viajou na máquina do tempo, não a máquina de H.G.Wells, mas na traquitana dos universos, talvez a “Máquina do mundo” de Drummond, e quem será o insano a desdizer-me?


“O dia estava de um calor intenso. Decidi conhecer a humanitas do século XXI, e estarreci-me com a visão de autômatos tocando e falando vorazmente com o que parecia ser uma caixa pouco maior que a de rapé. Caminhavam pela estrada afora, cabeça baixa, olhos baços. Percebi que 'O espelho', que falava da existência de duas almas, de dois eus, era plenamente possível. Veículos que eram certamente espécies de mutações de nossas charretes, só que sem os cavalos a impulsar-nos à frente, voavam em ritmo difuso por ruas largas, onde antes havia bondes. Continuei andando, quando deparei-me com uma loja que era certamente um antiquário, mas novamente veio o pasmo: era uma espécie de mercado de bugigangas que nunca imaginei pudessem existir, com milhares de aparelhos cujas luzes piscavam de maneira intermitente. Um homem, nem novo nem velho, para mim uma definição esquálida de um rapazola esquisito, trajando vestes estranhas e modernosas por demais, surgiu assim que adentrei na loja. Causou-me ainda mais suspeição falarem uma língua também estranha, mistura de termos desconexos e deselegantes; ‘Pois não, o que o senhor manda? Interessado no último aifone? Ou seria no aipede infinito?’ Tudo era como num sonho de apocalipses inquietantes. Nas paredes havia uma quantidade grande de telas de vidro, cujas imagens se moviam em ritmo frenético, ora um rosto de mulher, demasiado tingido de pó, cremes coloridos e batons que mais envelheciam que rejuvenesciam, ora um cavalheiro garboso falando daquelas máquinas possantes com as quais eu me deparara no começo de minha epopéia pela modernidade crepitante...”


Fato é que esse senhor, de cabelos de prata e óculos à la John Lennon, era submetido à estupefação e aos pecados de eras futuras, sem que houvesse muito tempo para digerir o que acontecia.


“Ao sair da loja de artigos hiperelétricos continuei meu périplo, havia muito ainda por conhecer. Minhas vestes causavam a estranheza normal para quem nunca viu de perto uma sobrecasaca, o dia infernalmente quente até me sugeriu que a ‘Igreja do diabo’, que certa feita idealizei em texto, havia afinal sido construída. Os gritos de aleluia à porta de um templo, onde me detive por alguns minutos, foram suficientes para me dar a derradeira impressão de que o tempo não evoluíra, mas ao contrário, o mundo revirava e era o mesmo, só que muito pior.


Quando caminhava ao redor da linda Lagoa Rodrigo de Freitas vi muitos transeuntes e muita gente montando em celeríferos de todas as cores e tipos; em algum momento em que admirava a superfície idílica da Lagoa ouvi alguém gritar 'Cuidado velhinho com a bike!’ porém mantive a calma, pois não pedalava em nenhuma bike, mas para minha consternação um velocípede meio enferrujado, conduzido por um rapazote de boné, passou chispando por mim e me levou a carteira (certamente esse episódio não fazia parte de meu ideário futurista).


Hora depois estava na orla da praia, assistindo a um belo pôr-do-sol; em meu tempo não se ia muito às águas, nunca fui bom nadador. Preferi a distância da admiração às memórias póstumas. Em outro instante caminhava célere em torno de uma construção opulenta, de cimento armado, um monumento circular que me chamou muito às idéias. Ouvi um grupo que vinha em minha direção gritar ‘Vamos invadir o Maraca!’ e ‘Uhu, é dia de Fla-Flu!' Essa turma portava uma espécie de uniforme, com camisas listradas de três cores que achei muito interessantes e harmônicas, em contraste com outro grupo que desfilava vestimentas de apenas dois tons, que a princípio não aventei que combinassem, e até hoje acho muito feias. Não resisti ao enorme clamor das turbas e entrei na nave, meio que arrastado pela multidão. Ao sair defronte ao que pareceu uma grande plantação, cuja grama se encontrava toda aparada, pasmei-me em muito; aos poucos chegavam mais e mais gentes, de tal maneira que o monumento encheu-se em questão de minutos. Não sabia o que ia acontecer, pensei em anotar em um caderno meus pensamentos para um futuro conto panegírico, mas não pude, diante da visão do que se sucedeu depois.


Aos gritos, que pareciam não os de aleluia dos que estremeciam os corpos dentro da igreja, mas apupos e vaias quase em uníssono, entraram por uma passagem ao nível da plantação cerca de vinte, trinta homens, talvez pouco mais que isso. A multidão disparava tiros que pareciam de canhões, mas eram fogos de artifício, como faziam no fim dos ciclos de um ano. Reparei que metade trajava o uniforme tricolor, metade era bicolor, e foi ficando mais fácil compreender que se separavam nas duas metades do campo, cada uma escolhendo um lado. Ao final havia como limite uma espécie de objeto semelhante à madeira pintado de branco, constituído de três peças unidas que presumi ser o tal ‘goal’ que tanto falavam enquanto eu era levado até ali. Imaginei um combate a ser travado e nós seríamos os espectadores daquela tragédia a céu aberto (não pude deixar de pensar em Shakespeare, ao lembrar de seus versos ‘Há entre céu e terra mais mistérios que supõem nossa natureza’).


Engraçado que havia um detalhe que passou-me despercebido até então: os homens davam pontapés e cabeçadas em uma esfera que daquela distância parecia de couro ou material similar; ora a chutavam para um lado, ora para o outro. Pareciam brincar e ter paz com aquilo, mas em certo momento um camarada vestido todo de preto os reuniu próximo do centro do campo. Os grupos ficaram atentos, parecendo assistir a uma conferência, até que o sujeito soltou um trinado com seu apito e todos passaram a disputar a esfera com volúpia e dedicação curiosas.


A cada investida para perto do goal - eu me contaminara rapidamente e já aprendera até alguns jargões daquela interessante atividade, como ‘mulambo’, ‘craque’, ‘chupa-sangue’, e um que me encantou sobremaneira: ‘nense’-, a multidão se inebriava, às vezes demonstrando irritação com algum dos elementos, que pareciam ter feito o contrário do que seria o correto fazer. Havia inclusive um que eles chamavam de ‘pereba’ continuamente, por não acertar nunca o tal ‘cruzamento’, que imaginei no início ser muitas outras cousas.


Certa hora alguém cabeceou a esfera para dentro do goal, de maneira tão violenta que estufou a rede que ficava presa a ele. A massa que portava o uniforme das três cores entrou em catarse, gritando de forma tresloucada; recebi vários abraços de desconhecidos que ali eram como amigos de longa data, fazendo-me ir no embalo daquele movimento que poderia assegurar ser de uma libertação pura e genuína, digna de um romance entre irmãos, troca de boas e poderosas energias. Eram homens e mulheres unidos como eu e Carolina, e tudo por uma causa que não era política, mas abolicionista de almas. Ao fim do espetáculo saí do monumento de cimento extasiado. Fui acompanhando a turba que entoava vários cânticos de louvor ao time que vencera a peleja, descendo a rampa que nos conduziu ao lado de fora.


Não sei como retornei ao meu tempo. O que me parece inegável à luz bruxuleante de meus sonhos são as reminiscências que levarei comigo até os últimos dias (e de que tive um time, que chamavam de ‘nense’).”


Waldir Barbosa Jr.

@anfetaminadialetica

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