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A mulher que matava homens

Atualizado: 8 de mar. de 2023

Escolheu dentre os seus semelhantes aquele que mais a atraiu


A mulher que matava homens
A mulher que matava homens
Ninguém nasce mulher; torna-se mulher.

Simone de Beauvoir


Era uma manhã de carnaval,

pingos esparsos tocavam a superfície árida da cidade, fazendo com que uma fumaça, típica de rescaldo após um incêndio, levantasse do asfalto, obliterando a visão a poucos passos. Abriu a persiana vertical com cuidado, de maneira a poder ver sem ser observada. Ao levantar da cama vislumbrou por um momento o resultado do que faria: uma poça de líquido rubro e viscoso encheu sua visão, enevoando o pensamento, tentando não sabia por que demovê-la de sua missão, imagens do Cristo negro transfixado em vários ângulos, irrompendo como tomadas delirantes de um cineasta pós-moderno se debatiam em sua cabeça, quase ao ponto de implodir o que estava determinada a fazer. Reviu com método aquele longo dia, cada passo que daria era refeito, como uma máquina monocórdica ela ia traçando seu story board de horror, enquanto tomava um café forte, sem açúcar, mastigava devagar duas ou três bolachas sem glúten, passadas de leve pela faca serrilhada, a manteiga de amendoim se arrastando como uma cara no chão duro de pedra portuguesa, fazia uma escovação brusca, porém necessária de dentes, e empunhava as roupas que escolhera na noite anterior, sexy, but no ordinary; por último dois jatos de desodorante nas axilas devidamente depiladas e uma névoa de perfume Herrera volatizaram-se como seus pensamentos por um instante, para logo a seguir recuperar o foco, como uma arma de mira. A maquiagem foi usada na mesma vibe sobre a pele nem escura nem clara, seguindo as dicas de uma influencer que seguia no instagram. Antes de colocar os pés pediculados fora do apartamento sala e quarto onde morava, no Jardim Botânico, olhou para o interior, procurando algo que tivesse esquecido, o ronronar do gato de estimação a fez voltar e colocar uma dose extra de ração para o bichano e de desodorante, talvez o dia porventura durasse mais que o previsto. Desceu os três lances de escada do prédio antigo, que ficava a vinte metros da principal em passo moderado, equilibrando-se no salto médio que acabara de adquirir em um brechó famoso localizado na Vinícius de Moraes. Pensou que poderia bem ser a garota de Ipanema, mas não era assim que gostaria de ser conhecida, preferia que outra alcunha viesse a fazer parte de todas as hashtags do universo: #amulherquematavahomens. Atravessou a pista em passo rápido, aguardou pacientemente o ônibus que fazia a integração com o metrô, entrou na composição que misturava os sexos em pleno horário de intenso movimento, alocou-se no meio da composição cheia e ficou de soslaio, observando e tentando entender quem poderia ser sua next victim; percebeu longe de seu campo de visão um camarada entrar aos solavancos na altura da Central e postar-se perto das portas, era o que ela categorizava como potencial ser a ser privado desse mundinho cão e infecto. Vestia uma calça jeans de marca, uma camiseta preta colada no corpo esguio e bem definido, os braços musculosos saindo das mangas como dois garfos de artrópode, o volume entre a barriga talhada e as pernas de rã insinuando uma metralhadora ejaculatória. Viu-se durante o percurso até atraída pelo sujeito, o rosto encoberto pelo boné também preto e os fones grandes impediam-na de ver suas orelhas, era tarada pelos aparatos auditivos. Sentiu um tremor quente percorrer as extremidades, sentiu seus pés fumegarem dentro das sandálias, o couro de búfalo parecia ceder ao suor que sentiu escorrer e misturar-se ao líquido genital que gotejava, ela estava nua e livre por baixo da saia à altura dos joelhos. Estava imensamente excitada pela visão sumária do truculento, e aos poucos, conforme o vagão enchia, o distanciamento visual com a criatura masculina a deixava mais nua e mais empoderada ao mesmo tempo, de tal jeito que decidiu pedir dois ou três Licença e cravar-se a cerca de um metro dele. Ele parecia mais interessado em uma menina de calça jeans apertada que também optara por ficar perto da saída, e que não parecia se importar com seu movimento de achegar-se mais e mais, de forma já nem tão discreta ao ponto dela presenciar o aumento do volume na calça jeans de marca, bem atrás. Ela deu mais dois passos e encostou nele, mas ele estava aparentemente desconectado, pensando em até quando conteria seus jatos seminais, até onde poderia exercitar a força da contenção macho-alfa-celestial. Até o ponto em que a moça deu pinta de afinal perceber, tal a pressão exercida, e ao movimentar-se para longe dele os olhos delas se encontraram, um pedido silencioso de socorro vinha de seus olhos azuis, e os olhos castanhos cobertos com as lentes de contato verde importadas disseram a ela Estou aqui, hei de apaziguar a sua dor, fique tranquila, e se distanciaram, deixando-o órfão daquele corpo escolhido para covardemente bolinar na composição. Ela, agora a meio metro dele, afinal chamou a atenção do homem, ele percebeu que era admirado, jamais desmascarado, apenas teve a certeza de que ela também queria, era para isso que havia nascido, para suprir as necessidades do sexo frágil e feminino. Sem palavras, ambos desceram na estação Cidade Nova. Foram seguindo um ao outro, a outra ao um, até que pegaram um táxi em direção a um motel barato na Gamboa. Ao adentrar no quarto, ela contou as palavras que haviam trocado, não mais que cento e quarenta, uma forma hiperdesenvolvida de mensagem de twitter. De pronto, ele foi até o frigobar enferrujado e pegou duas Brahma, o que a contrariou, mas o que esperar, uma Stela? Ele não parecia querer cometer algum jogo de sedução, foi tocando-a assim, bruscamente, e ela deu tudo a entender que estava gostando, adorando mesmo, mas não deu-se logo de cara; contornou a cama e pediu a ele que se despisse primeiro, que revelasse suas partes mais íntimas e gritantes, e o camarada realmente não a decepcionara em nada. Ela negou-se mais duas ou três vezes a tirar a saia, mas afinal cedeu e retirou a blusa de seda e as sandálias, colocando-as metodicamente em um canto perto da entrada do quarto, cujas paredes manchadas, com tintas velhas sobrepondo-se, lembravam um filme de horror trash. Ela quase em tom ordenatório disse Gosto de primeiro fazer por trás, assim, cuspe a seco, e ele, ainda mais animado, cedeu aos pedidos dela; a voz monossilábica atravessando o ar quente do cômodo diminuto, mal iluminado e com o ar em frangalhos, assemelhando-se a um motor empacando, parecia transmitir uma ordem impressa acompanhada do perfume caro, que ali se desvanecia, misturado ao mal cheiro que exalava do corpo dele, um suor fétido que paradoxalmente a atraía. Ele estava envolvido na cena, o falus apontando para as hordas de anjos do céu jamais poderia supor o que viria: ao empinar-se para a estocada e sentir o contato dele, o bafo queimando seus ouvidos e suas mãos ensaiando a posse e penetração ela sacou de uma faca recém comprada em uma cutelaria da Praça Tiradentes, afiada ao ponto de sangrar um porco sem que ele sentisse o mínimo de dor, o mínimo de culpa, e em um gesto articulado, rápido e preciso virou-se como uma ninja e a transpassou pela garganta do sujeito, de tal modo que sem reação ele não pudesse mais em sua existência dizer sequer seu apelido nas redes sociais; enquanto ele deitado na cama esvaía-se na viscosidade de seu sangue saudável e vermelho, ela afinal arrancou a saia, colocou um preservativo feminino e subiu em seu corpo que agonizava, de tal modo que os dois, de modos distintos e controversos, tiveram naquele exato momento seus êxtases, rápidos porém de tamanha intensidade, que as duas ou três selfies tiradas de seu iphone 9 desconectado da rede móvel - pelo menos por enquanto - apenas serviram como consolo e momento de expiação de culpas ancestrais de ambos. Ao gozar de forma sublime, ela sentiu o membro distender e afrouxar, ao que ela pacientemente e já calçada de luvas de procedimentos o puxou para fora, arrancando-o com a mesma lâmina que atravessara a garganta, picando-o em pedaços, embrulhando-os em papel toalha e dando duas ou três descargas contínuas no vaso em que fezes e uma enorme barata boiavam faceiras. Voltou em passos curtos e cansados, virou-se de lado e até tentou sorrir, como na música do Chico; após fumar uns dois ou três Gittanes com piteira levantou-se, limpou toda a cena do crime, como boa e aplicada estudante de medicina que pretendia especializar-se em legista, sabia como proceder quanto às possíveis pistas a deixar e as retumbantes provas que poderiam incriminá-la. Desceu os dois lances de escada com cuidado, abaixou-se para não ser vista pela recepcionista, que escutava uma música de Roberto Carlos, talvez Café da Manhã, e saiu tendo a certeza de não deixar nada que levasse a ela, na bolsa Victor Hugo ninguém diria que carregava também duas lindas orelhas.


Waldir Barbosa Jr.


Imagem editada: internet

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