A salvação de cabelos esvoaçantes
- anfetaminadialetica
- 13 de nov. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 7 de jan. de 2022
Um conto de Um Rio chamado Futebol

Perdi tudo, menos a certeza da tua bondade.
Virginia Woolf
Quando ultrapassou o vão central da Rio-Niterói João foi enfático ao afirmar a si mesmo: “Vou morrer hoje”. O tempo pareceu parar, os carros trafegavam em remota velocidade, uma dimensão de sonho estava estabelecida. A vida percorrendo os segundos, espraiando os fatos de uma existência medíocre. O emprego de corretor de imóveis mais era um bico, que o conduzia à gangorra da instabilidade completa. Ora estava prestes a se tornar um milionário, ora à larga margem da miséria. Guardados os excessos, João viu os frames de vida na tela da memória, às vezes em branco, às vezes repletos, onde tudo que fizera até hoje poderia valer algo para quem desse valor às coisas simples. Ter educado os filhos transmitindo princípios morais falidos como honestidade, amizade, respeito a quem quer que fosse poderia valeu algum bônus em outra dimensão. Sua mulher, com quem estava casado há 25 anos, fora os dois de namoro, era sua melhor amiga, e por ela bem provável que fosse capaz de morrer ou matar.
Encostou o carro pouco depois do ponto mais alto da ponte. Saiu do veículo que ainda pagava em suaves prestações, fruto de uma razoável negociação com uma concessionária da Abolição, onde dera uma entrada simbólica pelo modelo 2008. Quando olhou o mar, imediatamente pensou se teria coragem para alçar voo, um voo de abismo e morte, levando com ele seus tesouros mais íntimos. Uma fotografia dos filhos e da mulher estava na carteira de couro que ganhara no último aniversário. Era um dia claro, de sol invernal, mas intenso, aliás, tudo lhe pareceu intenso. O movimento de carros era pequeno, os domingos eram dias apropriados para se matar, não chamavam muito a atenção, lembrou-se de pensar desse jeito, racional e objetivo, como a situação exigia.
Quando finalmente decidiu fazer seu bodyjump sem volta, um veículo estacionou atrás do dele. Percebeu a figura esguia saindo do belo utilitário, colocando o triângulo a uns 30 metros, como reza o código de trânsito. Ela aproximou-se, se dirigiu a ele:
- Oi, amigo, precisando de alguma ajuda?
Seu gesto de resposta foi virar-se e encarar a mulher que falava com ele. Os cabelos acompanhavam a direção do vento, que agora corria forte, batendo no rosto dos dois de maneira a quase desmascarar a intenção de cada um. Vida e morte estavam ali fazendo seu puxa-estica; o homem, tentando terminar sua existência de modo digno e provando que tinha domínio sobre sua hora final; a mulher, cumprindo uma missão à qual se determinara ao sair do bairro do Ingá, em Niterói: salvar alguma vida.
João não respondeu de pronto a pergunta da mulher de cabelos esvoaçantes. Não poderia afirmar se era bonita, mas aquele gesto de desprendimento absoluto lhe soou de uma beleza atemporal, como se ainda existisse boa gente no mundo. Preferiu continuar em silêncio. Reparou que o carro dela continuava com o motor ligado, o alto-falante declamava algo de Chico Buarque. Era “Construção”, e o verso “E se acabou no chão feito um pacote flácido” lhe pareceu quase perfeito, ainda que seu chão de concreto duro fosse o marzão verde-azul daquela hora, próximo do meio-dia.
- Ei, ôou, você, está tudo bem?
A mulher parecia intrigada com a situação, até esboçou pedir ajuda pelo celular, mas preferiu manter algum diálogo com aquele sujeito que já deixara claras suas intenções.
- Posso te ajudar? O carro está com problema? Aceita uma carona até o Rio?
Estranhamente aquela sequencia de perguntas despertou João de seu sono de pré-morte. Tentou falar algo, mas as frases não saiam, vinham desconexas na forma de palavras soltas e sem sentido aparente. Não se sabe o por que, João lembrou-se do time de coração, lembrou-se do Maracanã cheio, lembrou-se de um tempo antigo de felicidade insana, onde se ouviam menos tiros, havia mais sorrisos e bons-dias, por favores e perdões emitidos por almas gentis e cordiais. Tempo de fábula, igual a “João e Maria”, também do Chico, a próxima música que tocava.
Deixou-se conduzir pela mulher de cabelos esvoaçantes até o carro. Quando entrou percebeu de imediato, através do adesivo no porta-luvas, que a mulher torcia pelo arquirrival, de seculares embates, mas, ainda confuso e sem esperanças, encostou a cabeça na poltrona e permitiu-se sonhar com melhores mundos.
Waldir Barbosa Junior
Imagem: criação própria
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