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Dois contos de carnaval

Atualizado: 15 de out. de 2020

Que fazem parte do livro de contos Um Rio chamado Futebol


A Rainha, a bateria e o estandarte


Um Rio chamado Futebol
Um Rio chamado Futebol

"Para que chorar

É tempo de samba com empolgação

Vamos recordar Rosinha

Encantando a multidão"

A morte da porta-estandarte, samba-enredo

da Imperatriz Leopoldinense, 1975

Walter da Imperatriz, Nelson Lima, Caxambu e Denir



Era um dia de tarde sem futebol. Mas foi como num sonho, desses em que despertamos tal qual bailando estivéssemos, só que a valsa era tocada por pandeiros, bumbos e tambores, percussão que nos extasia e faz levitar como se só alma fôssemos.


A chegada de Sua Majestade é precedida por sussurros ao pé do ouvido, por exposições de vida, confissões, declarações de amores nunca revelados, alguma angústia, de muita torcida. Os desejos são de que o time de nossa vocação original se erga da derrocada, emergindo do inferno que por motivos alheios a nossa compreensão vaticinou para si, vaticinou para o mundo, mas não de modo definitivo.


Em certo instante, em meio ao burburinho das conversas, avistam-se amantes em doce conluio, olhos nos olhos, boca querendo boca, corpo querendo corpo, alma querendo alma. O pagode regido pelo DJ ecoa pelo sobrado, percorrendo um caminho próprio, misturando-se ao aroma incomparável da iguaria que há tempos os escravos temperaram com sangue e ferrugem desprendida das correntes, mas que adotamos como um dos principais elementos de aglutinação. Afinal o que mais podemos almejar além de boa comida, bebida gelada e acalanto do tambor eletrônico que não cessa?


Também sou seduzido, o ápice da celebração interior se precipita, mas eis que um arauto comunica a chegada de nossa soberana. À volta do palco somos convocados para o despertar da bateria. Um a um os súditos de um reino impossível vão ocupando seus lugares, em torno da forma cada vez mais viva.


O sol começa a se por, a lua vem se achegando ao seu posto. Somos pierrôs e colombinas, e de um anti-eclipse total, que a tudo revela com seu clarão infinito, desprende um séquito de luzes. Aos poucos a jovem diva e sua bateria tornam-se amantes em momento íntimo, e de forma piedosa e lúdica dividem seu êxtase com a assistência, como se a monarquia fosse constituída de democratas com direito a um último pedido.


Assim percorro a estrada enevoada de meu sonho. A figura agora é de carne e névoa, seus pés de fada-madrinha evoluem como se de nuvem fossem, distribuindo amor para quem deseje, para quem se permita alcançar a torre do castelo, ousando cortejá-la. Ansiosos estamos pela coroação, a ninfa majestosa, flertando com todos e com nenhum, humildemente nos pede que esqueçamos sua beleza, seu gingado. Seus gestos absolvem a corte, cujos olhares são misto de inveja e de cobiça. Mas nos sonhos sempre há uma reviravolta, e uma ordem sai de sua boca, com poder de veto

definitivo: “Sejam felizes, brinquem, sorriam, façam amigos, comam da boa comida como se a derradeira refeição fossem, se lambuzem de felicidade verdadeira; chorem, sejam autênticos, sejam homens, sejam mulheres, sejam o que bem queiram, sejam humanos.”


Vai se consolidando o instante, o tempo não anda, não volta, não para. A cuíca, os tamborins e agogôs são os únicos a evoluir na batida do melhor samba. Cartola ou Cavaquinho, dúvida impune se instala no peito do poeta vencido pela beleza do samba, pelo enredo da musa. Só falta à altiva dama confessar em público suas fraquezas, para acreditarmos que tudo que se sonha é verdade. Dez são vinte minutos, meia-hora são dias, dias são meses, meses são a senhora eternidade; a jovem rainha é princesa, é musa, é perpétua, é do povo, como se a aristocracia nunca houvesse existido. Como se o reino fosse feito apenas de intrépidos guerreiros, que seguem nos vagões dos trens, nos bólidos cheios de gente apinhada voltando aos lares, vindos de uma trincheira que nem sempre tem sentido (a um sinal seu declararíamos guerra e sairíamos em combate pelos campos de uma batalha sem nome. Na primeira fileira o estandarte em punho, gravado nele o brasão da esperança, bordado com lágrimas e pintado com sangue cor de encarnado. Ao fundo um verde imorredouro, de onde se retiram as forças para a jornada inglória).


A rainha faz seu último rodopio, se equilibra no ar como se tivesse a batuta de sua corda bamba, a bateria para diante do ato final, o sangue endurece nas veias, a tiara pesa como se cravejada fosse de ouro e diamantes – porém, estamos em um sonho, lembram-se?


A nobre criatura despede-se da aparência humana. Transforma-se numa borboleta amarela, pousa sobre nossos sonhos e um a um vai nos despertando; continuamos na rota de colisão com o caos, mas um sentimento diferente nos acompanha agora

como cão fiel, pedindo tão somente o afago do melhor amigo.


Seguimos, levando no espírito a bateria, a música, a rainha. Tudo parece ter algum sentido no domingo, fadado apenas para ser o de uma tarde sem futebol, porém, é bem provável que seja o de uma vida inteira.


 

Negra Colombina (um conto de carnaval)


Um Rio chamado Futebol
Um Rio chamado Futebol

“A cigana leu o meu destino

Eu sonhei!

Bola de cristal

Jogo de búzios, cartomante

Eu sempre perguntei”


O Amanhã, João Sérgio



Era a quarta-feira das fênix do ano de 2014. A menina, de pensamento inchado e boca ressequida pelos abusos das últimas semanas, resistia em levantar o corpo exausto e sair da cama. Preferiu ligar a tv esticando a perna, ao invés de procurar o controle remoto. Vieram-lhe as lembranças por tanta exaustão:


Tudo começara no sábado do pré-carnaval, no meio da multidão de foliões do “Simpatia é quase amor”, bloco que percorria as ruas de Ipanema convocando como Nelson os mortos, os vivos e os zumbis que por acaso já tivessem iniciado sua transformação mais cedo, avisados pelas redes sociais de que o carnaval já podia ser

brincado. Era lá que se dava o start das folias de Baco, Rei Momo e cia. Joana - era assim que se chamava a menina, uma linda e insinuante mulher de aproximados 30 anos, pérola negra como a flor de ébano de Melodia - queria sua libertação. O rompimento de uma relação conturbada, entremeada de muito ciúme e paranoia, com um camarada tosco de nome Genésio, comemorava exatos 6 meses, e a

menina, formanda de educação física que fazia pleno jus à escolha da carreira, decidiu dar seu grito do Ypiranga e espalhar pela cidade seu perfume adquirido em promoção de site de produtos importados. Não havia como desmentir quem descrevesse Joana como uma moça cheia de atributos físicos e morais.

Por volta das três da tarde o calor estava em seu ponto de combustão máxima, os corpos e as almas banhadas em suor brilhavam sob a inclemência do astro-rei, e ela, cercada por um grupo de amigos de infância que sempre se reencontravam nessa oportunidade, decidira deixar de lado qualquer nostalgia do ser antes amado, prestes a ser tornar um rei deposto.


As marchas entoadas pela bandinha animada não davam trégua, emendando uma melodia na outra, e Joana certa hora acusou o cansaço natural que esse tipo de atividade proporciona. Pediu um tempo aos amigos e foi até a um bar na altura da Farme de Amoedo com Visconde de Pirajá comprar uma garrafa de água mineral, no intuito de apaziguar a sede. Pouco antes de chegar à porta do local apinhado de foliões pedindo refresco, um camarada dos seus 35 anos, tipo atlético, mas sem excessos, com um tom de pele avermelhado pelo sol inclemente, a abordou educadamente, falando em em um português bem ruim, com um sotaque semelhante às línguas faladas no leste europeu:“Querr mii mostrarr u Riuu?”


Joana achou tudo acelerado demais. Como assim conhecer o Rio? E se fosse alguém à procura de libertinagem, carnaval e samba? Não, nesse momento de ressurreição espiritual o que a linda negra de olhos rasgados e provocantes queria era tudo, menos uma aventura carnal com um sujeito do outro lado do mundo. Um, dois, dez segundos se passaram, os dois se encarando, assim como se já houvessem cruzado olhares no meio da multidão, em algum ponto equidistante. Lembrou de perguntar:“Amigo, você é de onde?” O rapaz até quis responder, mas uma leva de sujeitos mascarados passou nesse instante arrastando tudo, e assim como o sujeito pareceu surgir do nada desapareceu, deixando no ar vários pontos de interrogação.


Uma semana depois, em pleno sábado oficial do carnaval, Joana foi acordada bem no clímax de seu sonho com o gringo, lá pelas dez da manhã. Uma de suas amigas, que alugava com ela o sala e quarto em Copacabana onde as moças moravam, lembrou-lhe do compromisso que tinham por volta das 14 horas, na Lapa. Não era com Momo, mas com certa senhora de nome Madame Zuleide, conhecida por trazer o ente querido em quatro dias (com o aumento da demanda os prazos haviam sido procrastinados). Além do mais, Madame Zuleide aceitava cartão de crédito e parcelava em três vezes.


Pegaram um táxi na Barata Ribeiro logo depois do almoço, e cerca de meia hora depois estavam na subida da Joaquim Silva, em frente a um sobrado antigo de tempos imperiais, cuja tinta original da fachada ainda podia ser vista por baixo de duas ou três demãos. A velha senhora dava consultas no segundo andar do prédio. A subida foi feita em passos cuidadosos, estalando os velhos degraus de madeira carcomida por cupins. A porta, também muito antiga, foi aberta sem que precisassem bater.


Madame Zuleide não aparentava a idade que diziam ter, pois já passara há muito dos setenta, segundo relatos de fontes fidedignas. Na decoração da sala de gosto e cheiro duvidosos havia várias estatuetas de origem cigana, colocadas sobre prateleiras que pareciam que a qualquer momento iriam despencar. O quarto destinado às seções de adivinhação abrigava poucos objetos, ligados em sua maioria ao esoterismo, além de uma pilha de panfletos impressos em gráfica barata, com um português capenga prometendo até o paraíso. As amigas entreolharam-se, mas para Joana o que valia naquele momento era reencontrar o ente querido, ou melhor, desejado, ainda que em frenética fração de segundos. O homem do gelo levemente tostado pelo maçarico ligado da cidade maravilhosa havia de ter ficado para o carnaval, havia de voltar aos festejos de Ipanema. A probabilidade era grande, dizia a si mesma que até era provável, mas como bem sabem os estudiosos da natureza humana, queremos acreditar para crer.


Envolta em uma escuridão semi-tecnológica, com luzes que se apagavam ao comando de sua voz, Madame Zuleide deu início a uma espécie de mini-show hightech, onde feixes de luz ora piscavam intermitentes, ora diminuíam drasticamente o ritmo, de modo que Joana e a amiga, entre uma consulência e outra, pouco captaram das mensagens extra-mundo, pouco intuíram dos mistérios relacionados ao amor e à vida, solenemente proferidos pela cartomante. A advinha foi categórica ao dizer, antes de terminar: “Ele voltará, não será como uma volta completa, mas fique tranquila, o seu amado retornará ao fim do quarto dia”.


Ao final da seção de motivação kármico-corporal-espírita pouco sabia se valeria à pena tanto esforço para rever seu arlequim das terras frias. A colombina saíra de lá com o pressentimento de que a quantia paga seria estornada na próxima fatura do cartão de crédito. No entanto, sabe-se que nesse tipo de transação não há passo para trás, apenas sucesso ou retumbante fracasso, e Joana, ouvindo o conselho da amiga, decidiu esquecer o rapaz cujo sotaque ficaria para sempre gravado na lembrança, junto com aqueles olhos azuis rompendo as lentes escuras dos óculos e encontrando os seus bem no meio das retinas, querendo dizer “Não te conheço, porém, te amo, queres ser a minha colombina?”


Não havia lugar melhor para esquecer do que ir ao jogo do seu time, era contra um adversário considerado pequeno, jogo para cumprir tabela e cravar três pontos. Pediram ao taxista que tocasse para o Maraca, certamente dava tempo de fazerem um lanche rápido e assistir de pertinho, quase à beira do campo.


Faltavam cerca de 15 minutos para o início do jogo, Joana e a amiga entraram calmamente no estádio, e quando já estavam confortavelmente alojadas, eis que a vidência de Madame Zuleide dava o ar mediúnico de sua graça: o ser nórdico, espécie de Thor da geração Redbull lá estava, a poucos metros dela, em colóquio animado com duas morenas de parar a Sapucaí em dia de desfile do grupo especial - era clara a preferência do rapaz pelos contrastes -, mas, sejamos justos, havia também dois camaradas que logo depois aportaram, levando as mulheres dali, deixando o ser nórdico aparentemente sozinho. Foi nessa hora que Joana pensou em se aproximar, lembrá-lo do encontro expresso que tiveram, entregar-lhe o paraíso na terra, recitando juras de amor. Quando fez menção de se levantar, ergueu-se também um sujeito negro de seus 1,90 de altura com pelo menos 1 de largura. Ele sentou-se ao lado do louro e aplicou-lhe um desses beijos de matinê que até aos adultos impressiona; diante do acontecido, do corpo trêmulo e do estado semi-apoplético que se apossou de nossa linda personagem, restou a ela assistir à partida como se fosse final de campeonato, torcendo para que o artilheiro do time enchesse a rede de gols.


Waldir Barbosa Jr.


Os dois textos são de Um Rio chamado Futebol, à venda pelo link:

https://www.clubedeautores.com.br/livro/um-rio-chamado-futebol


Imagens editadas que ilustram os contos do livro

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