Edgar
Atualizado: 15 de out. de 2020
Um conto do outro mundo
Eu o conheci há pouco mais de seis meses, em meados de 1874. Navegávamos no mesmo navio fazia uma semana. Íamos cortando o Atlântico rumo à África, cada um carregava consigo seus objetivos, eu ia a negócios (mantinha à época um rentável comércio de armas, que fornecia mormente para os colonizadores britânicos e caçadores de elefantes com quem estabelecera já duradoura parceria), ele ia movido ao que me parece por um irrefreável desejo de estabelecer relações com o lado primitivo do mundo, conhecendo os ritos canônicos africanos e seu funcionamento, em busca de material e ideias para seus contos terríficos. Nosso encontro deu-se de maneira fortuita; era noite alta, o tempo pairava embaçado e as vagas nos jogavam de um lado ao outro, parecendo querer nos hipnotizar. Eu me encontrava na proa do navio, devido ao forte enjoo que me acometia e ele, surgindo do nada, pareceu comover-se com meu mal-estar e minha consequente consternação ao vê-lo.
Aproximou-se e de forma elegante ofereceu-me ajuda; após colocar quase todo o jantar para fora, começamos a conversar sobre temas diversos, desde os méritos da boa escrita, que eu também, apesar de naquele momento ser apenas um mero comerciante conduzindo sua carga bélica, comungara um dia, passando por temas como virtude e não virtude, estética e coisas afins. Confessara-me achar às vezes falar com os que já se foram, inclusive afirmou-me ter um duplo, um ser idêntico a ele a vagar também no mesmo universo em que estávamos conversando naquele momento. Ao término de cerca de uma hora, já próximo de amanhecer, nos despedimos, mas antes de partir, o cavalheiro proferiu as palavras que nunca mais esquecerei: “Os mortos caminham sobre a terra, meu amigo, foi um desses espectros que revelou-me isso...” Apesar do frio intenso que fazia, um eriçamento de quase todos os pelos do corpo foi para mim mais que um sinal de alerta, foi uma espécie de aviso premonitório do que o breve futuro me reservava. Edgar – assim se chamava o franzino homem de cabeça avolumada, presa no corpo como um pêndulo oscilando de um lado a outro conforme expunha suas ideias - foi deveras convincente em sua assertiva, quase me fazendo crer em mundos paralelos e além-fronteiras, mas não o suficiente ao ponto de me fazer largar o que fazia para sobreviver à época.
Não saberia interpretar o que ele quis dizer, mas novamente senti aquele formigar percorrendo minha medula e indo em direção aos últimos dos meus dedos dos pés, que estavam enregelados.
Continuaria pecando aos olhos do Criador, eu não acreditava na existência pós-morte. Sempre fui um agnóstico pervertido, um descrente de tudo que não fosse factível, até do suposto fenômeno da criação divina eu zombava com os poucos amigos com quem eventualmente tratava sobre o tema. Utilizava minha bíblia, presente de minha falecida mãe em seu leito fúnebre, tão somente como um encosto de cabeça quando me hospedava em pousadas lúgubres e sujas nas quais passava uma, duas noites, a trabalho. O comércio clandestino de armas nos impõe essas coisas, discrição é uma das almas do negócio. Edgar já publicara alguns escritos que haviam conquistado considerável quantidade de leitores fiéis, não obstante as críticas impessoais dos entendidos, que solenemente ele tentava ignorar, mas percebi de pronto nessa tentativa de desdém uma mágoa abissal, que ele exalava na forma de suspiros melancólicos: “Um dia hão de reconhecer meus escritos, isso há de acontecer”. Com mais essa frase de efeito ele se despediu, com um aceno de cabeça.
Na manhã seguinte, no restaurante do navio, encontrei-me novamente com Edgar. Ao vê-lo, percebi que estava sozinho e fui cumprimenta-lo, mas para minha surpresa o homem, que agora sob a luz que entrava pelas janelas era ainda mais esquálido do que me parecera à noite, fingiu não conhecer-me, ou assim supus, não sabendo quem eu era. Preferi não insistir, poderia passar por um lunático e ser trancafiado no porão da nau, junto aos ratos que habitavam o lugar como hóspedes cativos.
Passei o dia matutando o porquê daquele gesto de indiferença, mas certa hora desisti de entender e dormi um pouco. Acordei já tarde da noite. O tempo abafado fez-me querer voltar à proa para uma lufada de ar fresco, quem sabe. Passados alguns minutos, percebi alguém a espreitar-me com o olhar; era outra vez Edgar, agora transformado novamente no mesmo ser empático e solícito, apesar do negrume dos olhos denunciar algo de sinistro, que me virara o rosto mais cedo. A figura parecia ter recobrado a memória e querer continuar a prosa de onde paráramos. Nosso diálogo agora havia caminhado para certas confidências, eu ia revelando ao sabor dos ventos detalhes impróprios de minha atividade criminosa, relatando casos e situações curiosas pelas quais já passara, Edgar por sua vez me falava de forma efusiva sobre seus métodos criativos, como e por que havia escolhido essa ou aquela cena para desenvolver seus contos lúgubres, por que essa ou aquela elucubração entrara em suas histórias de terror. Ele se comportou de maneira tão elegante que mostrou-se para mim o interlocutor perfeito, falando e ouvindo nos tempos corretos, de uma forma que não encontrara ainda em ninguém que conhecera até então, sem fazer uma reprimenda que fosse as minhas atividades de certa forma fora da lei, nem emitir conselhos descabidos que beirassem o inoportuno. Porém, em dado momento, já se aproximando o raiar do dia, ele empertigou-se, parecendo ser tomado por outra persona, talvez a mesma com quem topara mais cedo, e disse de modo soturno: “Meu caro, a morte não encerra um ciclo. A vida de algum modo encontra um jeito de se perpetuar...” Não saberia interpretar o que ele quis dizer, mas novamente senti aquele formigar percorrendo minha medula e indo em direção aos últimos dos meus dedos dos pés, que estavam enregelados. Despedimo-nos novamente. Achava que nunca mais o veria, pois era a última noite de viagem, nosso navio aportaria no meio da manhã seguinte no porto de Ouidah, na República do Dahomey.
Ao acordar, levei minha parca bagagem para fora do navio. No cais juntei-me ao carregamento de armas que transportava e que aguardava para ser distribuído. Era formado por cerca de dez caixas de madeira de lei africana, envolvidas por grossas e pesadas correntes e lacrados por robustos cadeados de ferro fundido, cujas chaves carregava no bolso interno de minha sobrecasaca. Fato estranho, contudo, se deu ao conferir os volumes: um dos caixões havia sido aberto provavelmente com um pé-de-cabra e fechado de forma grosseira novamente. Por motivos óbvios eu não poderia registrar qualquer indignação. Dei umas moedas a dois carregadores para que colocassem os invólucros de madeira em dois coches alugados e preparei-me para partir no carro da frente. Saímos do cais em direção a um de meus destinos, quando a caixa que apresentava sinais de arrombamento deslizou por trás do coche e espatifou-se no chão de pedra portuguesa, deixando que um forte odor de formol tomasse conta do ar, colocando à mostra o cadáver em avançado estágio de decomposição. Ao ser abordado pelos oficiais que encontravam-se lá à procura de algum delito, disse não saber do que se tratava, mas, no íntimo, eu sabia que seria detido pelas autoridades e teria que confessar minha culpa pelo assassinato de Edgar, por quem eu me apaixonara perdidamente. Hoje cumpro entre as grades de uma prisão minha pena.
Waldir Barbosa Jr.
Imagem: colagem com imagens da internet
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