Nelson e o Natal
Atualizado: 26 de dez. de 2020
Uma crônica de Natal que Nelson Rodrigues não escreveu
Achegou-se ao seu lugar de glória e profanação. Ali ele se sentia um deus que tudo podia. A cadeira cativa na redação era uma espécie de trono, sua fama o tornara um mito entre os estagiários, um ser cabuloso para os veteranos e uma lenda para a sociedade hipócrita da época. Todos os dias ele adentrava no Correio da Manhã, que ficava na Avenida Gomes Freire, soltava entre grunhidos de noite mal dormida um rascante bom dia e acendia um, dois, três Hollywood sem filtro. Então enfim podia teclar sua velha Underwood e iniciar seu quinhão diário. Nessa data era antevéspera de Natal, 10 da matina. Seu editor-chefe o havia incumbido de escrever uma crônica que falasse de Natal e religião brasileira. Nessa época, o já maior dramaturgo do país era meio que uma entidade intocável. Com ele não se discutia, mas quem ousasse, teria que usar de argumentos convincentes. O editor, misto de amigo e admirador, foi enfático:
- Meu amigo, sei que é espeto, mas necessito que você produza esse texto, é uma edição especial, a matéria sai na manhã de domingo, 25. Nelson rebateu:
- Em cima da hora você me vem com essa... Se ainda fosse sobre polícia e ladrão, Fluminense... Sei não, é espeto; o editor não se fez de rogado:
-Quem manda faltar à reunião de pauta? conto contigo com o texto pronto até sábado pela manhã.
O escritor se encontrava agora diante de sua tarefa de Hércules. Pensou que poderia iniciar o texto afirmando, em letras garrafais: “O Natal não existe. É uma invenção do homem pelo homem e na verdade dos fatos contra o homem”, mas concluiu que seria um tiro no pé. Talvez fosse melhor seguir uma linha que agradasse à família brasileira: “O senhor Jesus Cristo pede a vós que o esqueçam, famílias brasileiras e universais. Está de estopa cheia de tanta hipocrisia e palhaçada”; no entanto lembrou-se do tema de pauta que o editor o jogara na cara: “Natal e religião”. Fumou mais uns dois cigarros, contra o ventilador. A essa altura os colegas de jornal já haviam percebido a total animosidade de nossa personagem. Alguém pensou em aproximar-se e servir-lhe um café, mas recuou ponderando consigo que poderia ter as vísceras comidas como se fosse um comunista. “Bom, tenho que pegar leve, raciocinou com objetividade rodrigueana. Tenho que ser jornalístico, mas também literário, e não pega bem falar de Fluminense. Esse tal Natal pertence a todos”, esse pensamento foi para ele definitivo. Após cerca de duas horas diante de sua máquina, afinal saiu o texto que segue:
O Natal que Judas não viu
Amigos e amigas, é fato, chegamos bem perto do Natal. Não que tivesse ansiado muito por isso, mas contra os fatos não há argumentos. Estamos diante da suposta data em que Jesus Cristo, o “Salvador”, nasceu. Dizem a teologia cristã e os que professam a doutrina que Ele veio para nos redimir de nossos pecados. Não sei sinceramente se conseguiu, após tantos séculos de maldade, mas empenho-me aqui a considerar que há motivos para afirmar que fracassou de forma incontroversa em sua “missão”. Continuamos não nos entendendo, haja vista as guerras - foram centenas até aqui, e duas quase apocalípticas; não concordamos em quase nada. Uns preferem o Cristo, outros Alah; conheço os que comungam dos alfarrábios escritos em pedra secular de Buda, e há os que não preferem nada e ninguém, como eu. Há fés de todo o tipo, o que não seria problema, mas sabem as senhoras e senhores o que vemos hoje nas manchetes e matérias de revistas e jornais, uma bagunça de ideologias e religiões que não se entendem. A Babilônia deixou-nos apenas e tão somente seus jardins suspensos e uma língua que ninguém consegue traduzir, nem mesmo o mais sábio dos copistas.
Na política não é diferente. Muitos falam em golpe, mas qual nada, o que há no Brasil é um reordenamento de posições estratégicas, um sacudimento geral no caos em que nos encontrávamos, com fortes tendências cubano-escapistas. Enfim, sem sair do tema, estamos mais para loucos que pularam o muro do manicômio do que para adoradores de imagens que somos, ou imaculados mantenedores da fides cristã.
Hoje o senhor Jesus Cristo renasceu nos lares desse país um tanto mais envergonhado. Seus filhos denigrem seu nome. Não há dúvidas que precisam exercitar a tal “bondade inerente”, “a franciscana humildade”, coisas do gênero. O cenário mais parece o da Inquisição, também é fato, mas isso às vezes torna-se necessário, diante das “manifestações contrárias à reorquestração sócio-político-econõmica de que tanto precisa a nação” (sic).
Leitores e leitoras, concluo aconselhando que se unam e salvem o Natal. Acredito que os fatos precisam de algum oxigênio, de algo que para alguns se chama “esperança”. Lembro sem puxar a brasa para minha sardinha que as cores proclamadas “natalinas” são o verde e o vermelho, isso para mim tem o seu valor (a segunda cor nem tanto, mas vá lá). Só por essa curiosidade ainda por mim despercebida passei a considerar a data uma efeméride quase futebolística.
Saudações a todos e bom Natal.
Waldir Barbosa Jr.
@anfetaminadialetica
Imagem: internet (editada)
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