Não mais que uma semana
Atualizado: 15 de out. de 2020
Texto de trinta anos, reeditado para os tempos atuais; cabe arrependimento?
Por que me olha com olhos de mal-assombrado? Não percebeu o que eu disse?
Paulo, Insônia, Graciliano Ramos
Nem mais um dia, prometeu a si mesmo. Negociara, refutara diante de duas ou três certezas, mas no fim concordara. Em verdade pareceu-lhe algo razoável. Aquela parte de si próprio não era dada a espécies chulas de barganha, permanecera inarredável. Uma semana, nada mais. Sete dias, pouco mais de cem horas, tempo mais que suficiente (lhe pesavam algumas dúvidas, mas estava tudo muito claro, pelo menos quando fez o pacto). Em uma semana mudaria tudo, a ordem estabelecida dos fatos, acumulados durante cinquenta anos daquela existência, bem antes de começar a ser deseducado e se tornar um selvagem, um bruto viril, desapiedado de tudo e de todos, menos ainda do que chamavam amor. Amor de consumo, pois sim, amor sob a forma de maço vagabundo de cigarros, amor em forma de bibelô, amor de dia dos namorados.
Moveu a mão com dificuldade e aproximou-a do rosto. Olhou na mais ínfima das cicatrizes, era culpado de muita coisa. Com aquele dedo puxara muitas vezes o gatilho, sem o mínimo sinal de humanidades. Duras, polutas, quantas obscenidades aquela mão havia cometido. Olhou seu reflexo no vidro da janela, teve vergonha de si mesmo. Mirava-se com derradeira serenidade, não obstante a auto piedade; era como se o tempo não mais contasse, como se os dias restantes estivessem soterrados bem longe do relógio. Era um indivíduo solitário em uma cidade ausente, súbita hecatombe a tomara, sugando-a por um reto sulfuroso de carne podre e lava, manchado por algum espírito e mínima consciência. Há muito não havia espírito, nem alma, qualquer gota esquiva ou preservada de compaixão. Era um fóssil duro e seco, incapaz de cometer até ao que a si prometera, o suicídio. Não era mais um homem, vulto descarnado a contar o tempo que lhe faltava. Deixara que o estado de coisas chegasse a um ponto sem retorno, onde o desapreço interior gritava em sua face: covarde! agora tinha só e unicamente uma semana, míseras pouco mais de cem horas. Desejou multiplica-las por minutos, segundos, distender os números, espichar a conta, regar o tempo para que brotassem mais algumas horas, não havia como. Era medíocre em aritmética, a mais elementar conta ou divisão de lucros lhe parecia intransponível, digna da maquininha de calcular que carregava no bolso, quando ia em missão secreta. Levava-a consigo sempre que era chamado por seus superiores, era seu amuleto de ouro. Adorava o brilho refulgente do ouro, sempre que dava passava em uma joalheria na Rua do Ouvidor com Sete de Setembro e adquiria com dinheiro vivo uma nova peça para sua coleção. No peito ostentava uma corrente grossa com a efígie de São Jorge, seu padroeiro. Era após beijar a linda medalha que subia o morro, em incursão. Lembrou que vestia o uniforme como quem veste uma couraça intransponível, às vezes esquecia-se de que tinha um corpo físico, débil e frágil como qualquer outro.
Agora a maquininha de calcular já não prestava para nada, eram só sua consciência e o que restava daquele corpo inconsútil, que jazia sobre o leito de morte, nu e indefeso. Atemorizava-se pensando não ter mais como contar os cadáveres que ficaram pelo caminho. Aproveitaria esse vácuo temporal para rememorar os fatos, justificar cada assassinato como um ato de genuína virtude, de insólita coragem. Sobre a mesinha de cabeceira, onde ficavam os remédios para lhe amenizar a dor, havia alguns retratos com a mulher e os filhos. A escalavrá-lo com picadas de esperanças falsas ouvira da boca imunda de dois ou três doutores palavras e frases de consolo. Quisera se meter na conversa, falar, quem sabe convencê-los de que algo de bom ainda sobrara naquele corpo, talvez um par de córneas, metade de um pulmão empretecido pela fumaça que aspirou anos, um coração a bater descompassado, não obstante justo e incorruptível. Lembrou-se, entre um espasmo e outro, da mulher e dos filhos. Eles são sempre úteis nesse tipo de ocasião; pensou no primeiro beijo, no primeiro sexo, lúbrico, voluptuoso, erétil, no par de vermes trocando confidências ao coçar o palato do outro com uma avidez estulta, quase sublime...
No início planejara dois ou três herdeiros do que viesse a obter, buscara uma mulher com certo grau de inteligência e gozando de boa saúde, além da pacatez e da fleuma necessárias para aturar suas saídas clandestinas, suas madrugadas de invasão a morros, bordeis e zonas mistas de paz, onde ele levava o seu para casa com insuspeita dignidade. Há quanto tempo mesmo não os via? Pouco importava agora. Suspeitava com certezas de que um deles não lhe pertencesse, provavelmente enquanto dava duro levantando às 5 da matina, dirigindo cerca de meia hora até o quartel, que ficava no centro, aturando as ordens inquestionáveis de seus superiores, partindo às vezes em missões mais que nebulosas, onde sangue e sombras se misturavam aos cadáveres que acertava, nem sempre de forma honrada e corajosa como a profissão pregava. Mulher pouco amorosa.
Já que não havia para onde correr, nenhum ponto a negociar com Deus, preparou-se para o que viria. Esboçou mentalmente seus próximos passos, ou melhor, seus movimentos que seriam feitos pelos outros, pelos médicos que o condenariam a uma eutanásia silenciosa, pelo padre que seria chamado para abrir as portas do céu, implorando para que fosse perdoado pelos crimes que cometera em prol do Estado. Viu-se desnudo por dentro, parcamente ligado a fios e tubos, tenuemente preso aos pedaços vitais, que desmanchavam-se, sendo depois arremessado aos cães que farejavam a propina. Estava agora inevitavelmente desarmado, ele que defendia com veias e dentes a posse e uso de armas de fogo, achava que assim seu trabalho tornar-se-ia menos maçante e perigoso.
Concluiu que era impossível cumprir o que prometera. Talvez se escapasse dali viraria algo que preste, olharia por um outro viés os tais direitos humanos que tanto ouvira falar em sua vida aquartelada. Porém não havia tempo, o que lhe restava era para algum ajuizamento com o Criador. Lembrou-se dos terreiros que invadira a pontapés na porta, desmantelando as oferendas e tigelas com comidas e bebidas que os pagãos davam em troca de algo que não compreendia, mas que agora, por algum fenômeno epistemológico, ele intuía saber o sentido, espécie de epifania retrógrada.
Foi pedindo perdão conforme uma lista que estabelecera, lembrou que as horas encolhiam a cada pensamento, no ritmo em que suas sinapses o deixavam cada vez mais sem lembranças. As imagens iam deformando-se em pesadelos, obliterado por névoas ele pressentia a morte chegar. Um mês quem sabe e poderia reparar a maioria dos equívocos, amputar o que não tivesse jeito, recuperar um história aqui, outra ali, mas os pecados ficam para sempre, recordou ter ouvido isso em uma missa de sétimo dia à qual assistira, por motivo da morte violenta de um companheiro de farda. Não havia mais tempo para nenhuma revolução, restava esperar, imaginar consertar o mundo a partir de um mecanismo quebrado era mera presunção, um silogismo que não fechava, inconsequente estupidez. Se ao menos acreditasse nos homens, mas ninguém seria capaz de fazê-lo acreditar nisso. Pensou em fechar os olhos e esperar, pensou na mulher e nos filhos, no maço de cigarros que tinha a certeza de ter deixado em um dos bolsos da jaqueta cheia de medalhas de condecoração, pensou com um sorriso no carro último modelo, em sua mansão na Gávea, no cálice de Chateau Margaux safra Doc cor de sangue, na munição que guardava junto com a .50 de numeração raspada, escondidas no fundo da gaveta da mesa de cabeceira. Não havia tempo para mais nada. Era melhor que morresse.
Waldir Barbosa Jr.
Imagem editada: internet
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