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O ano em que Pessoa veio ao Brasil

Atualizado: 12 de jan. de 2022

O poeta português visita a terrinha brasilis em busca de Machado de Assis, um ano antes desse morrer


O ano em que Pessoa veio ao Brasil
O ano em que Pessoa veio ao Brasil

O fato deu-se em 1907, não há registros oficiais nem extraoficiais, o que existem são relatos oficiosos à boca pequena, buracos na biografia do poeta português que bem podem coincidir com a inverdade da narrativa a qual me proponho transmitir às senhoras e senhores. Não poderei ser breve, tampouco sucinto, a pena me obriga compulsoriamente a escrever e escrever, em busca da incorruptível e inabalável aletheia, a verdade absoluta para os gregos, a verdade relativizada para nós brasileiros.


Completara então dezessete anos, tenra idade para percalços e traslados de corpo vivo, mas fazia-se essa temeridade de deixar um púbere atravessar o Atlântico em um vapor sem melindres, à procura de conhecimento e aventura; não fujamos à correta narração dos fatos, Fernando Antônio ouvira falar e lera em periódicos sobre literatura que circulavam em Lisboa que havia na terrinha Brasilis um escritor bem acima da média, que até de gênio poderia ser chamado: Joaquim Maria Machado de Assis. O nome levara-o a pensar se tratar de homem de posses, que escrevia para preencher as horas ociosas, mas pouco sabia o jovem lisboeta da condição de operário da palavra que ostentava ainda à época o nosso escritor brasileiro, nascido no morro do Livramento, perto do centro fluminense; Machado estava prestes a completar sessenta e oito primaveras, estava combalido pelo falecimento de sua esposa Carolina, e começava a ficar debilitado pelo mal que seria responsável por sua despedida desse mundo, tido por uns como uma úlcera cancerosa (no seu atestado de óbito constariam arteriosclerose múltipla e esclerose cerebral, mas o que importa fazer registrar aqui é que Pessoa veio em busca de um aconselhamento, uma palavra de incentivo do mestre das letras, algo que parece ter logrado êxito).


Machado ainda era plenamente senhor de suas faculdades, e ainda que vítima da tristeza e da melancolia, cumpria sua rotina de ourives do texto, acordando cedo, fazendo as abluções e refeição matinal como sempre, para depois achegar-se à pena e ao tinteiro e dar-se à imaginação e à labuta de embrenhar-se pela floresta escura, germinada na alma daquele que escreve. Pessoa, ao chegar aos cais do Valongo, pediu em português carregado que o levassem ao Cosme Velho, onde sabia residir o Bruxo, como era chamado, e ao passar por algumas ruas da cidade do Rio de Janeiro as comparou mentalmente com a sua Lisboa e não sentiu-se estranho, ao contrário, imaginou-se até morando aqui, em um dos sobrados da rua Mata-Cavalos, um dos logradouros que Machado tanto citava em seus contos e romances. As idas a algum bar para jogar conversa fora com amigos também literatos viria muito depois, mas independente de pretextos, a capital fluminense o encantara. Chovia fino; ao desembarcar do coche e subir as escadas de pedra da bela residência, o jovem poeta ia matutando o que falar e como se apresentar, e o mais temeroso lhe ocorreu: vai que o velho homem já se esgotara da natureza humana, assim como Bentinho, Quincas Borba e Brás Cubas?


Na terceira batida da aldrava sobre a porta de madeira de lei uma senhora de pele negra o atendeu, mas sem entender muito do que falava, pediu que entrasse e aguardasse no salão de estar; passaram-se cerca de dez minutos até que aquele senhor de barba e cabelos brancos viesse a passos cansados, porém firmes, ao encontro dele. Ao dizer quem era e o que pretendia, o escritor brasileiro não demonstrou estranheza, apenas disse Vamos e foi guiando-o até sua vasta biblioteca, à esquerda de um longo corredor que ficava próximo aos fundos da casa, bem grande por sinal, pensou Pessoa. Pediu que a criada preparasse água para o banho do português, já era próximo da hora do jantar, cerca de uma hora para o anoitecer, mas Machado gostava de pontualidade, e ainda que estivesse comendo pouco, apreciava sentar à mesa e mastigar sua refeição vagarosamente, acompanhado de um meio cálice de vinho tinto. Sentaram-se um defronte ao outro, o brasileiro agora mirava o português por trás de seus óculos, tentando decifrar aquela jovial figura que não obstante o remetia a algo antigo, perpétuo e inimaginável, ao mesmo tempo que bem frágil. A figura esguia e minúscula de Pessoa causava medo de tão etérea, quase um fantasma de sobrecasaca, a observá-lo também de modo curioso, pensando em como iniciar propriamente a conversa. Falaria na admiração que o movera a atravessar o Atlântico? Em lições de escrita? Qual era seu método? Referências? Passatempos? O que era para ele o sentido de escrever? E o de viver?


Machado não era de se dar de pronto, havia de ser conquistado, como uma formosa dama. Fez perguntas ao menino como quem busca arrancar cerebralmente a síntese do universo, O que procuras saber, bom infante? Queres aprender a escrever? Não te fies em minha pena nem em minhas ideias, elas surgem como pequeninas estrelas em um céu nebuloso, e eu as observo de longe e transcrevo minha impressão que delas faço de maneira a agradar a mim e aos poucos leitores que tenho, não me preocupo com o resultado final nem com finais felizes, aprendi que esses não existem, mas a trajetória sim, essa pode ou não ter beleza, ainda que não sejam os homens a determinar isso; acredito em uma conjunção de vontades universais em conluio com a entidade humana, a isso alguns chamam Deus, outros Diabo, pois como bem deves saber até uma Nova Igreja ousei descrever em um de meus contos, inspirado pela humanidade que vejo caminhar na terra; o rapaz de Lisboa não pareceu em momento algum surpreso ou decepcionado, para a tenra idade tinha ele certa maturidade no olhar e nos gestos. O velho escritor o teve, a partir daquela reação, em alto conceito, oferecendo a ele um cálice do Porto, ao que Pessoa anuiu, propiciando um brinde sincero de almas que até poderiam ser as de um pai e de um filho.


A estada foi alongada para mais ou menos uma semana, onde cumprindo uma rotina literária estoica o já consagrado escriba e o futuro grande poeta conversaram sem melindres sobre técnicas literárias, construção de personas e formas de narrar um texto; Machado preferia a terceira pessoa, o poeta, ao contrário, até pelo gênero que admirava e que exerceria mormente em sua vida, falava através do eu interior, e confessara a Machado que tivera a ideia de dar vida a várias vozes que dizia habitarem dentro dele, uma mais jovial, que tinha prazer em declamar sobre a angustiante modernidade, de forma livre, sem amarras métricas ou formais; um segundo eu dava vazão à natureza, onde pastores de rebanho assumiam a fala descrevendo as benesses da vida no campo; uma terceira, mais errática e erudita, falava de mitológicas viagens e conquistas de seu Portugal, ficava represada por heptassílabos e rimas soantes, exercício de genuíno e compreensivo nacionalismo; havia ainda uma quarta, que ele achava ser a mais próxima e ao mesmo tempo a mais distante dele mesmo, onde reinavam o existir e as contradições da vida e da morte, tendendo mais para o melancólico, para a contemplação da própria alma. O Bruxo do Cosme Velho ouvira toda a explanação do rapaz sem quase piscar a alma, permanecendo atento ao que poderia a muitos parecer insano, mas ele sabia não haver insanidades quando se escreve. Reportou-se de imediato ao Alienista e a O Espelho, contos que lhe eram muito caros e que tratavam da condição humana de uma maneira que até poderia servir a estudos da alma e do intelecto humanos.


Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...

O Espelho, Machado de Assis


Em alguns episódios das conversas repara-se no português um olhar enigmático, ao que Machado, percebendo, retrucou certa feita: Ora, por que me olhas assim? Talvez a cor de minha pele o impressione, afinal, não esperavas que eu fosse um misto de branco e preto, um café com leite; sejamos francos, eu sou um mulato e isso o deixa perplexo e confuso, não é isso? O escritor lisboeta ainda não havia se decidido a dizer o que realmente pairava em seus pensamentos. Quisera dizer a verdade, que imaginara Machado como um ser com biótipo resultante de uma genealogia de europeus português e espanhol, jamais que pudesse ter a pele semi-negra, os cabelos curtos e um tanto ondulados, fruto da miscigenação brasileira. Machado não fez discurso nem teve vontade de expulsá-lo de sua casa, respirou profundamente metódicas três vezes e ateve-se ao que o jovem pedia, lições de como escrever bem, coisa que o rapaz sabia que o escritor fluminense fazia como ninguém. Seguiram adiante, e do alto de sua sapiência, Machado sussurrou a si mesmo que aquilo tinha um motivo cósmico-existencial, e havia de um dia compreender.


De quem é o olhar

Que espreita por meus olhos?

Quando penso que vejo

Quem continua vendo

Enquanto estou pensando?

Por que caminhos seguem

Não os meus tristes passos

Mas a realidade

De eu ter passos comigo?


Fernando Pessoa, "ele mesmo"


Aproximava-se o fim dos dias. Machado notara que o jovem não se expusera em quase nenhum instante. Sua infância, a morte prematura do pai, o matrimônio de sua mãe com o padrasto, que o criara como um filho natural, esses temas não faziam parte de seus comentários pessoais, muito longe disso. Ainda que indagado, Pessoa tergiversava, não tocava em assuntos muito íntimos, no máximo flertava por alto com as trivialidades. Ao contrário dele, o velho escritor falava abertamente das saudades de Carolina, sua esposa que recém falecera, poucas semanas antes daquela visita inesperada. O que Machado poderia jurar é que havia palavras e silêncios em seu discurso subliminar, avessos à raça negra e à figura feminina, assuntos que pareciam incomodar o futuro poeta lisboeta. Talvez fosse a forma de olhar os retratos espalhados pela casa do Cosme Velho, onde o escritor posava ao lado da mulher, estampando de forma serena sua felicidade, talvez fosse a forma como se dirigia aos criados, negros que haviam sido há muito alforriados, um inclusive já nascera livre e gozava da confiança cega do escritor, era mais que um parente próximo. Ao constatar esse fato o português várias vezes se amuava, se tornando casmurro como um dos mais famosos personagens de Machado, e só retornava ao estado natural, que não era muito diferente desse, quando caía a noite, ao brindarem com um cálice de vinho do Porto pouco antes do jantar.


Um dia antes de findar a semana de colóquios e estudos das letras, Pessoa e Machado fizeram um acordo tácito na última noite em que jantaram juntos, que aquela série de encontros literários nunca fosse comunicada a quem quer que fosse, o pacto de silêncio seria uma forma de permanecerem amigos, mesmo a distância; dizem que há cartas em algum baú de madeira, onde os escritores trocaram impressões e amabilidades literárias, porém, isso morreu com os dois.


Waldir Barbosa Jr.

@anfetaminadialetica


Imagens editadas: internet

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