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O Crime

Atualizado: 15 de out. de 2020

Um conto de nossos dias


O crime
O crime

Minhas mãos iam lentas. Mas havia tal continuidade permeando a tudo, que me assustei ao olhar no espelho, convexo e frio, do pneu. Crime enorme sob minhas mãos. Ofegava, seguramente. Luta tão viril a dos homens, quando entre tocar o tempo, plenitude e sereno, preferimos matar um homem, cravar no centro pontiaguda espada, penumbra de obscuras fontes a nos acariciar proficuamente. Sons vindos de longe percorrem seu caminho, levados pelo vento, tudo para se chocar com um homem e seu ultimo suspiro, fusão eterna e absoluta nos contempla. Arrastei-me até à maquina. Velho e cansado, inabitava-me o sentimento do mundo, apenas um cadáver me limpava da ideia de vazio, das roupas enodoadas de sangue. A alma, corpóreo fantasma, podia toca-la e sentir sua insuportável rugosidade, gigante esmagando anão.


Sem combustível. Voltei os olhos, o inicio e o fim começavam ali, alfômega de minha vida. Matei um homem, dei ponto terminal a um nome, a um corpo, gerações de membros, documentos, falta deles, alma. E matar um homem é sobretudo viver sedento, algo que precede a nós que estou matando sem palavras, desconhecido homem que ao me roubar me inventa. Sentimentos tão ulteriores, contudo estranhos, não obstante meus. Deles me apodero, como se sempre os soubesse em mim, e caminho para matar um homem, equidistante ponto nos separa, espelho ermo incapaz de revelar.


Ligo o rádio, a consciência esta acesa, daqui a pouco vai escurecer, ficaremos aqui eu, a noite, um homem. Mulheres, sempre me constrangeram, aliadas que são da noite. Agora um homem. Olha-lo é como ver o som que há pouco dele saia, gemido a gemido, corrente de vida a se desfazer no limbo. Já não posso mira-lo sem lembrar de mim, ali, à deriva, sua insuportável presença me esmaga, um inextrincável matrimônio nos abraça.


Desligo o radio, hora de um País. Não há horas H particulares, são sempre de mim e de milhares. Uns de fome, outros de doença, boa parcela se mata, muitos não existem, perante as dissoluções. Apenas homens.


No banco da frente inicio de luta, prévias marcas de sangue antecipam a tudo. Lentas mãos a dissolver um homem, mistura de mundos, que os pios chamam caos. Eu sou o caos. O caos está em mim. Inverto a ordem e continuo um homem. Afundo as mãos na lama primordial e repito o homem. Arranco (dor primeva) uma vértebra e nunca extraio o contrário de homem. Minhas mãos lentas, a enxugar coração de homem, pequena, gangrenada flor de homem. Gerar, criar um homem, para não se ter o vazio, vão de terra, destino de homem, canteiro do Mal, Bem um dia, provavelmente. Minhas mãos sujas para sempre, de sangue e de homem.


Retirei as impressões, marcas de homem. Quis roubar--me, e findei a fome? O Mal que há?


Havia gasolina num vão de trás. Fiquei um pouco mais ali, parado, talvez rezando (não, nunca soube rezar), quem sabe assoviando Brahams, algo mais popular. Não, foi o silêncio, úmido e claro, saindo de mim, cravado. Motor de carro, luz efêmera, caminho aberto para o inferno, céu de nenhum tempo, escuridão secreta, ainda assim, a acompanhar-me, esse inextinguível silêncio.


Waldir Barbosa Jr.


Imagem editada: internet

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