O Emparedado
Atualizado: 9 de mar. de 2023
Um conto de terror baseado em O Gato Preto, de Edgar Allan Poe
Encontro-me aqui há muito tempo. O carcereiro me chama pelo primeiro nome, ainda que não tenha dado a ele tal liberdade, penso que ele deve achar-se meu dono em parte, afinal estou condenado. Eu não respondo nunca, apenas imagino na penumbra eterna uma figura paquidérmica, de odor insuportável, ácido e corrosivo, cuspindo no prato e empurrando-o para dentro da cela. Ao afastar-se vem um alívio sobre-humano, e deixo que uma lágrima percorra minha triste face, vincada. Eu desejo mostrar sincero arrependimento, pensar que não faria o que fiz, mas é um raciocínio inútil e mesquinho. Eu a golpearia de novo com a machadinha, racharia seu crânio com crueldade e veria com imensa satisfação silente o sangue escorrer até que ela suspire pela última vez, esvaindo a alma para o aether. Foram anos simulando o que não sou capaz de ter, amor pelo próximo, nem mesmo por ela, que me alimentou sempre com boa comida, me deu de beber água fresca, serviu-me com subserviência canina o melhor vinho que podíamos ter. Deitamos tantas vezes e mormente aparentar retribuir o amor que demonstrava, sempre achei que um dia tudo encerraria de um modo sombrio. É minha natureza homicida, que jamais deixou de me habitar, como se eu fosse um receptáculo do Mal. Certa vez, quando menino ainda, eu acordei de madrugada, o frio enregelante tornava o quarto um lugar de morte, sorumbático e soturno. Ao colocar os pés fora da cama, percebi que meu irmão, que dormia na cama ao lado, estava envolto completamente nos braços de Morpheus. Passei por ele pé ante pé, mirei sua face tranqüila e mentalmente me despedi dele. Peguei a parca bagagem com a qual me embrenharia pelo Novo Mundo, fui à porta do quarto de meu pai, abri com muito cuidado e olhei-o mais com comiseração do que com ternura, atravessei a sala e saí. Tinha a essa época próximo dos dezoito anos, planejara seguir em autoconhecimento, tentando compreender a natureza inumana dos homens e conseqüentemente a massa formadora de meu caráter Sui generis. Meus cadernos de contos e poemas já continham muitos escritos, eu julgava ser capaz de me virar como podia trabalhando com letras. Meu pai já nos abandonara de várias maneiras quando nossa mãe se foi, confesso que não senti pena nem remorso ao partir, deixando meu irmão mais novo, alguns pertences sem valor e ínfimas boas memórias.
Consegui uma colocação em um barco pesqueiro, servindo como grumete. Dois anos nessa lide se passaram até ser apresentado a minha futura mulher, em uma taberna de uma das cidades em que fizemos parada para comercializar os peixes. De um namorico entusiasmado a um casamento razoavelmente feliz deu-se cerca de dois meses, célere demais para seus parentes e amigos próximos, que não eram muitos, mas para nós era o tempo exato em que o amor plantara suas sementes em nossos corações puritanos e devotos a Deus. Fomos morar em uma casa velha alugada no subúrbio. Por esses mistérios inalcançáveis eu conseguira um emprego razoável como revisor de texto em uma tipografia de bairro, ganhando o necessário para nossas necessidades básicas, menos que precisávamos, é bem verdade, mas não havia o que fazer. Minha mulher lavava e passava roupa para algumas senhoras da sociedade, e com isso equilibrávamos as contas. Os anos seguintes foram misericordiosos conosco, e conseguimos comprar juntando economias um casebre modesto na periferia. Não tivemos filhos, eu descobrira mais jovem ter uma doença que culminou em minha esterilidade, e acredito que esse fato tenha desencadeado em algum instante a infelicidade de minha mulher. Foi aos poucos, com menos sorrisos, com menos intimidades, com menos amor. Os bichos que habitavam nossa casa eram a exata correspondência a minha incapacidade de colocar filhos em seu ventre. Eram coelhos, cachorros, peixes e aquele maldito gato preto. Certamente que nem sempre fora assim, eu até nutria simpatia e apreço humanos por eles nos primeiros anos. Demorou para que eu atribuísse aos bichos meu imenso vazio no espírito, nem mesmo as idas às missas de domingo apaziguavam meu coração, nem o tempo que dedicava a escrever, no sonho em vão de conseguir publicar um livro de contos ou uma novela. Meu ódio a todas as espécies de vida foi crescendo em gotas, que viraram paulatinamente pequenas lagoas e depois imensos oceanos, envoltos em sub-reptícias correntezas dos piores sentimentos destrutivos. A pregação do pároco da igreja que freqüentávamos de nada servia, eu fingia lhe dedicar minha atenção, mas internamente concatenava as mais malévolas e repreensíveis idéias, dignas do pior ser vivente. Como é notório para todos, houve um dia em que o Mal afinal atingiu seu ápice, e entre esfolar vivo o segundo gato preto com aquela mancha branca metamorfoseada em forca e cometer um crime imperdoável, preferi dar cabo de minha mulher com requintes de extrema vileza. E mais que isso, ao desafiar a inteligência inferior da polícia, eu assinei minha confissão de culpa ao bater com a bengala na parede onde seu corpo inerte repousava, de maneira pagã e subversiva, de modo a revelar o estado de putrefação de minha mulher, como se a expusesse nua em uma vitrine. Culpa daquele maldito bichano, deveria ter tido a coragem de arrancar-lhe a cabeça, junto com o olho que restava. Não o fiz, e o infame delator apontou seu único olho e sua boca vermelha para mim, gritando com seu choro trevoso, de criança: Foi ele!
Eis-me aqui após minha sentença sumária. Minha condenação à forca foi apenas protelada por recursos de alguns parentes dela, que preferem que eu morra aos poucos. Não há um dia em que eu não pense em arrependimento e contrição espiritual. Um padre vem aqui a cada quinze dias para tentar me converter ao Evangelho, como se eu tivesse deixado de acreditar no Todo Poderoso. Eu nunca disse a ele que carecia de fé religiosa. Fiz o que estava predestinado a cumprir, era tão somente isso. O padre esforça-se em compreender, mas ao final de nossas leituras do Livro Sagrado eu é que pareço convertê-lo, imprimindo-lhe boa parte de minhas ideias convictas e fundamentadas sobre a desintegração do caráter, inerente a todo ser vivente, sem chances de redimir-nos perante o Milagre da Criação. Inúmeras vezes contei-lhe minhas experiências em várias situações de minha malfadada existência, depreendendo delas que o infortúnio que me afligira havia sido uma escolha ao mesmo tempo consciente e carregada de intuitiva e anímica aversão à humanidade e a tudo que respire. Ao vê-lo cabisbaixo, eu lhe conforto, tirando dele o peso de seu fracasso como conselheiro espiritual. A leitura dos salmos me faz ter mais convicção de que minha maldade é uma marca ininteligível e indelével de minha personalidade perversa, fosse eu alguém que comungasse da crença espírita poderia afirmar que mil reencarnações tivesse, mil vezes eu repetiria, como o pêndulo de um relógio, a minha sina.
Sozinho, depois que ele vai embora, em algum tempo sou atormentado pelos mais terríveis sonhos, onde círculos infernais são parte integrante de meu périplo por outros mundos, tão ruins quanto este, e a busca em vão por minha amada é sempre precedida de muita tristeza. Tal qual um Orpheus desenganado eu a resgato do Hades, porém, ao não acreditar no sucesso de minha empreitada eu volto minha face jovial para o submundo, e nesse exato instante minha bela Eurydice se desfaz em morte ante meus olhos desesperados e chorosos. Aos gritos, sou acordado por risos diabólicos no primeiro átimo e depois efetivamente por uma cascata gélida de água turva e fétida jogada em meu corpo também frio pelo carcereiro de plantão, no intuito de me despertar do mundo dos vivos. Lá eu reencontro minha mulher, com o mesmo semblante doce e apaixonado de quando a conheci, na taberna onde aportei em uma de minhas viagens no navio pesqueiro. Gosto de relembrar isso, são memórias que amenizam minha desgraça.
Dentre elas, há a de Pluto e do outro gato preto, a quem não demos nome. Carrego muitas mortes comigo, e são elas que me mantém vivo, vigilante. Em um caderno de folhas engorduradas eu rascunho minha deplorável história, com pedaços de carvão jogados como comida aos porcos por um dos guardas, que deve ter alguma simpatia ou sentimentos de falsa piedade para comigo. Eu mordo a isca como um rato faminto e anoto o que me vem à mente, quando tenho vontade. Uma vez por semana há o banho de sol. Nesse dia eu acordo de maneira forçada bem cedo, sou obrigado a comer a ração que me dão e a fingir que interajo com os outros detentos espalhados pelo pátio, o que parece deveras interminável. Volto por dentro alegre para minha masmorra, para cumprir meus dias. Daqui sairei apenas para me juntar a minha mulher, isso se Deus misericordioso permitir, algo que não creio. Tenho a total ideia do que serão as voltas que restam da ampulheta. Eu não ligo para riscar nas paredes há quanto tempo estou aqui. Minha danação é para sempre. Se perguntam se desejo um ajuste com Nosso Senhor, se no outro lado pedirei perdão a Ele pelo que fiz, não saberei dizer. O que foi feito está cometido. Assumo meu caráter maligno e volatilmente tendencioso para o Mal absoluto, e ainda que os arcanjos defensores advoguem eventualmente a meu favor, justificando meus atos alegando minha aparente infância feliz e arteira, onde tendo como esconderijo o quarto de ferramentas eu seccionava os pobres animais que esfolava ainda vivos para ver como eram por dentro, onde a esporádica convivência com um pai sevicioso e cruel deixara profundas seqüelas, não há alegações finais que justifiquem minha defesa, creio mesmo que todo esse conjunto de fatos faz parte da verdadeira educação religiosa e da transmissão dos princípios cristãos. Quero cumprir em vida a minha pena, emparedado no meu corpo velho e cansado e em minha alma consciente de meus pecados. As ave-marias e os pai-nossos que o pároco me recomenda perdem-se em um monólogo monocórdico e quase inaudível para mim, não redimem meus crimes nem abrem caminho para a redenção. Os cadáveres que perpetrei pelo caminho infestam-me como larvas e moscas, eu me nutro deles, os restos imortais dos animais que matei, daqueles gatos infames, de minha mulher e de mim mesmo nunca decompor-se-ão.
O tempo aqui corre a sua maneira, apunhalando-me com agudas picadas de vida, vida estéril e imprestável como a minha. Porém, eu irei até o fim, não anteciparei minha partida por mais que os açoites fustigantes da memória tentem me convencer de que não há outra saída, vou aguardar com leniência o cumprimento de meu destino. É hora de tentar dormir um pouco. O carcereiro acaba de passar avisando aos berros que apaguemos as lamparinas. Amanhã pode ser que não acorde, porém, não desistirei de abraçar o arrependimento e juntar-me definitivamente ao Senhor, ainda que saiba que não conseguirei derramar uma lágrima verdadeira por tudo isso.
Waldir Barbosa Junior
@anfetaminadialetica
Muito bom e aprender