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O itinerário da bala perdida

Atualizado: 5 de dez. de 2023

Um conto de escárnio


Você vai morrer, e não vai pro céu (Titãs)

Quando João Antônio percebeu já estava morto. O projétil de grosso calibre transpassou o coração zunindo entre as balas dos fuzis, que faziam uma espécie de concerto caótico e pintado de sangue. Do alto do Morro da Conceição ouviram-se doze badaladas. Chovia uma chuva fina, pingos que com o passar do tempo se misturaram ao rubro do melaço, escorrendo pelo peito negro. Três policiais militares se aproximaram, a passos lentos. Olharam para o corpo morto, para os olhos fora das órbitas, para os lábios inchados, de onde um filete de sangue venoso saía transbordando das vias aéreas. Um suspiro muito próximo da partida selou a cena dantesca. Para aqueles homens não havia mais nada de novo. João seria mais um indivíduo a ter seu nome computado na vala aberta dos inquéritos policiais, onde um a um se amontoavam os cadáveres dos negros e pobres habitantes, no trem cargueiro da operação. O rito de morte fora precedido por uma intensa troca de tiros. Ao correr para se esconder ele não teve muitas alternativas. Onde estava se corresse para a frente iria direto ao olho do vulcão, se ficasse perigava tomar uma bala de fuzil no meio da cara ou no peito. Instintivamente encostou-se à parede de uma das construções e rezou para todos os orixás que lembrou. Os projéteis estourando nas paredes o deixavam atônito, mas também anestesiado. O rapaz petrificou de tal forma que nem quando deu uma aliviada e tudo pareceu ter voltado ao estado normal de coisas, conseguiu se erguer e tentar se esconder de fato. Ele mantinha os olhos fechados, vivendo cada frame do pesadelo como nunca fosse acabar, mas agora que uma calmaria de morte tomara conta do lugar, ele sentiu algo queimar em seu peito, e uma dor entre alucinante e pacificada lhe percorreu a alma. Abriu os olhos e tateou com as forças que escorriam do corpo. Os sentidos fugiam, o ar rareava ao ponto dele apenas balbuciar o nome de sua companheira, Janete, que o aguardava na última fileira de casebres do Morro. Um dos policiais chutou o corpo para que ficasse na horizontal por completo. Um dos outros o revistou. A carteira de trabalho e o RG batiam, o rapaz que acabavam de executar parecia alguém de bem. O terceiro, de patente mais alta, ao verificar que se tratava de mero extermínio injustificável, mandou que os outros dois limpassem rápido a cena do crime. Ainda estava tudo no breu. Na troca intensa de tiros o transformador foi a primeira vítima. Eles sabiam que em pouco tempo os moradores, percebendo que os tiros haviam cessado, sairiam de seus casebres atemorizados, a fim de contabilizar os efeitos do infortúnio de mais um dia de “operação” no morro. O sargento Cezário conteve um grito de ordem, mas incisivamente disse entre os dentes para o soldado Oliveira arrastar o corpo de João um pouco para a direita e acomodá-lo de maneira a parecer que resistira à abordagem das forças legais. Cezário puxou uma pistola, de numeração raspada, que trazia para ocasiões fortuitas como essa, limpou-a meticulosamente com um pano, antes de passar no peito da vítima e arrumá-la na mão esquerda do corpo ainda morno. Os anos de corporação tinham dado ao sargento uma destreza incomum para alguém que estava bem acima do peso, o homem parecia levitar ao mesmo tempo em que dava ordens e se movimentava contra o tempo que escoava.


Ao terminarem de limpar o local das provas mais evidentes, ouviram um barulho acima de suas cabeças, eram os moradores que começavam a se movimentar, como peças de um jogo macabro. Os PMS então deram uma rajada de metralhadoras para o alto como que para alertá-los de que o tiroteio ainda estava propenso a continuar. Porém, o cheiro de morte espalhado pelas vielas do Morro da Conceição impregnava tudo, mesmo há muitos metros dali, até a entrada do morro. O sargento estava ofegante. Não era medo do que havia feito, era o efeito da adrenalina correndo nas veias infladas, contornando todo o corpo fora de forma e voltando para o cérebro, de forma a avisá-lo de que era preciso ser ainda mais ágil. Virou-se para um dos soldados e disse:

- Oliveira, vamos! O tempo está acabando. Tudo certo aí? Faltando alguma coisa?

Os pensamentos do soldado por alguns instantes foram para sua infância. Ele fora sempre um menino pobre, cuja família de pais separados e cinco irmãos no total passaram por dificuldades que o impediram de se formar em direito. Restara ao rapaz, entre atos delinqüentes, incluindo pichações nos muros dos vizinhos, quebra de vidros de carros para roubar toca-fitas e brigas de gangues, os delitos que podem formar ou deformar o caráter de alguém, se não forem devidamente contidos. O pai de Oliveira, que o chamava de Júnior, seu último nome, fora do exército, mas não permanecera. O arrependimento que o marcaria para sempre semeara o terreno das expectativas, e forçado a fazer o concurso para PM, Júnior se tornou o soldado Oliveira. Tinha 26 anos recém completados. Possuía uma constituição forte, gostava de exercitar o corpo na academia do quartel. A pele negra e os cabelos crespos não eram algo do qual se orgulhasse, às vezes ele se perguntava por que não havia nascido em uma família de brancos ricos que podiam presentear os filhos com carros novos, roupas de marca e viagens para a Disney.

- Não sargento, tudo nos conformes! Ativo e operante!


O outro soldado era um caso à parte. Chama-se Vildomar, seu nome na corporação era Bebezão, e era mais um apelido que tinha se transformado em alcunha definitiva. Tinha cerca de dois metros, era um camarada bastante forte, e sempre que havia serviço que requeria força, não inteligência ou sagacidade, o Bebezão era convocado. Falava pouco, quase sempre de forma monossilábica. O sargento tinha isso em alta consideração, achava ser uma vantagem nessas situações extremas agir mais e falar pouco, desde que devidamente conduzido. Fora Bebezão quem dera os três disparos com sua pistola extra, que guardava junto às partes íntimas. Era seu quarto membro, contando com a pistola “oficial” e o fuzil. A mando do sargento a cena do crime fora modificada de maneira convincente, a preocupação em fotografar e olhar pelos olhos da câmera do celular era uma das formas de fazer o checklist. Não era a primeira vez que faziam isso, mas era um reboot que eles pareciam ter prazer em startar.

- Sargento, acho melhor vazar, estão tentando falar aqui pelo rádio, uma hora vai ficar esquisito não responder.


Ele havia abaixado o volume do rádio, mas sabia que não iam demorar a mandar equipe de reforço. Deram mais uma geral e desceram às pressas pelas vielas, não havia mais como esperar. Iam percebendo no caminho olhos nas sombras, por entre as frestas das janelas das casas. Antes de chegar ao pé do morro toparam com uma equipe de reforço. Trocaram palavras evasivas e avisaram que havia muitos mortos, que a operação havia sido exitosa. Ao entrarem na viatura os homens se olharam em clima de irmandade. Quem conduziu o veículo para fora do perímetro foi Oliveira, que era exímio motorista, havia aprendido cedo e dirigir com um parça. Um silêncio comum a essas situações extremas encheu o ar, ao ponto de qualquer palavra naquele momento incendiar a viatura. Foram para o quartel prestar seu depoimento, como era de praxe. Estavam de bem com seus uniformes respingados do sangue de um inocente, agora silenciado para a eternidade. João não mais iria com Janete, sua noiva, aos toques de Candomblé no terreiro de Mãe Lucinda de Oyá, quase sempre no último domingo do mês. Nunca mais o casal faria o périplo de ônibus e trem para chegar à baixada, que sempre fora tida como muito perigosa. A cidade enorme e tão diminuta ao mesmo tempo era o lugar mais insano de se estar agora. Quando Janete, após inúmeras ligações dadas para o noivo assim que o tiroteio começou, pensou no iminente, no até provável incidente que poderia estar acontecendo, a moça sentiu um arrepio percorrer-lhe a alma. O atraso era considerável, ela o esperava para terem mais uma intensa noite de amor. Colocou metade do corpo para fora da janela de maneira temerária, ignorando o alerta de sua mãe, dona Nina. Projetou o olhar até onde o campo de visão permitiu. Nada dele. Esperou contrariada que os tiros cessassem. Quando tudo parecia afinal ter terminado, em mais um dia de operação oficial, ela despinguelou descendo. Ao contornar três veias abaixo se deparou com os vizinhos ao redor do que à distância parecia ser alguém ferido. Havia uma poça de sangue que escorria, e sua imediata reação foi dizer mentalmente para si João! Petrificou. Ela rezou para todos os seus orixás, apertou a conta de Òxúm que trazia no pescoço e foi se aproximando, passo a após passo relembrando em frames toda a sua longa história com o Neguinho de olhos azuis, assim o chamava, sempre que queria ironizar a ascendência afro-caucasiana dele, resultado de uma efêmera aventura entre sua linda mãe baiana e um holandês que fora passar um carnaval em Ilhéus. As idas ao cinema assistir a filmes de terror, a dramas e também comédias, as tardes de domingo no Municipal curtindo Lá Traviata, Carmem e tantas outras operetas, os incontáveis desejos projetados no diáfano pôr-do-sol no Arpoador, junto à Pedra do Leme, vendo as ondas bater com força no chapadão, o sexo intenso que ocupava a vida como um voto de confiança e de fé, assim como a crença pra lá de interminável no Òrúm foram se estendendo na tela mental, arremessando-a para frente e para trás. Quando afinal percorreu aquele trajeto emergiu do sonho e acordou no olho do pesadelo, que era mais real que poderia supor. Os amigos mais chegados tentaram apaziguar seu desespero, foi inútil. Ela se ajoelhou ao lado dele, entre chorosa e demente, recusando sair das boas lembranças para adentrar no caos. Ela foi buscando algo em si que pudesse manter o mínimo de sanidade. Ao invés de choro convulsivo ou gritos interrogativos, carregados de ódio, ela optou por chorar de maneira quase carinhosa, com a mão sobre o cadáver do noivo. Em minutos chegaram mais vizinhos, uma mistura de recém chegados ao morro, antigos moradores e gente que não tinha relação direta com mais uma tragédia, que seria brevemente citada na tv e nas redes sociais. Alguém trouxe um cobertor e cobriu o morto. Outro alguém, solidário, acendeu uma vela de sete dias. A chuva esquálida não era capaz de apagar a chama. Não havia vento. A atmosfera era pesada, havia uma muda consternação geral. Quem o conhecia estava ainda mais revoltado. "um moço tão bom", disse uma senhora que o conheceu menino ainda, "esse não merecia esse fim", proferiu um senhor a quem o rapaz dava bom dia e boa noite sempre que passava por ele, na janela, ao ir e voltar da casa de Janete. João morava fora do Morro, em uma rua próxima. As sextas-feiras eram certas de ir para a casa da noiva passarem o fim de semana. Apesar das ações policiais cada vez mais constantes, o casal conseguia se abstrair da implacável realidade e ousava idealizar uma existência insurgente e avessa aos fatos.


Agora pouco importava. O que viria depois pode parecer uma película de terror, suspense macabro ou história de um Poe carioca e suburbano. Passaram os dias, passaram os meses. A Janete anestesiada deu lugar a uma mulher destemida, sedenta por justiça. Com o apoio da mãe e dos amigos e amigas e com a anuência de Iroko, que é o condutor de tudo, regido por Órunmilá, ela constituiu um advogado, um promotor público, que levou o caso à frente. Lutaram como podiam, com a força dos fracos, conseguiram prisão temporária dos envolvidos, reconstituição do assassinato, até julgamento. Mas o mundo é dos que tem poder. A Ifá tudo é permitido ver, a ele é possível descerrar as vestes impuras do mundo, e isso foi feito. Provou-se que o que ocorrera foi uma mera e sumária execução sem alegações que explicassem o fato de um inocente estudante de música da UFRJ ser alvejado à queima-roupa por três disparos de fuzil. Verificar-se-á que a luta por meios humanos foi vencida pelo establishment.


Mas o que acontecera para que uma desgraça abreviasse a jornada no Ayè? Foi essa exata pergunta que Janete fez à Mãe Lucinda, cerca de quinze dias depois. Ela estava de frente para a yalorixá. Ao colocar os búzios em movimento, Mãe Lucinda invocou os mais altos prefeitos, e perguntou em voz baixa várias frases curtas. Após várias caídas, ela olhou de maneira assertiva para Janete e falou:

-Minha filha, você lembra que quando jogamos da última vez que estiveram aqui eu lhes falei que João precisava dar obrigação de um ano o quanto antes? Que Egungun estava quizilado e pedia uma oferenda o quanto antes?

Janete suspirou fundo. Era verdade. Eles haviam estado lá da última vez para justamente tentar ver uma forma de apaziguar Egungun. Iroko não dá respostas imediatas, a mãe de santo não escondera nada, e sob o véu de Órunmilá revelara o que Ifá dizia sem meias verdades. Ao fim desse novo jogo elas se sentaram no meio do barracão e choraram o morto. Saiu de lá consolada, e ao invés de invocar os espíritos dos eguns, de clamar por sangue e extravasar o rancor ela optou por se calar.


Os três policiais responsáveis diretos pela execução de João foram julgados não culpados. Ao menos pela lei humana. Insolitamente, por esses desígnios que o homem ou a mulher desconhecem, pois há mais véus que velas acesas no Òrúm, o que aconteceu é que um a um os assassinos de João morreram de forma curiosa e ainda não explicada. Bebezão foi decapitado em um acidente de carro quando, ao não guardar distância, entrou na traseira de um caminhão guincho. Ninguém de sua família sabia da verdade, mas a imaginavam. Oliveira foi morto em uma falsa blitz na Linha Amarela, ao reagir. Em sua mente doentia ele se sabia culpado, e naquele dia em particular teve uma súbita intuição, quando um vento atípico entrou por sua janela. O sargento Cezário foi o último a partir. Seu fim foi marcado por torturas imensas, pois ao descobrirem que ele era policial os seqüestradores não tiveram ínfima compaixão. Parece que antes de fazer o acerto com o abstrato ele tentou rezar um pai-nosso, na intenção de todos que abreviara a existência.


Fazia parte dos planos de vingança de Janete tudo que acontecera com os algozes de João, mas ela, quando soube do que ocorrerá com os três carrascos de seu amado noivo, voltou ao terreiro de Mãe Lucinda, não para agradecer a vendeta e pagar

alguma promessa que pudesse ter feito, mas para pedir proteção.


Waldir Barbosa Jr.

@anfetaminadialetica


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