O lobisomem de Madureira
Atualizado: 24 de mar. de 2023
Um conto de terror à carioca
Due to my strong personal convictions, i wish to stress that this film in no way endorses a belief in the ocult.
Michael Jackson, Abertura de Thriller
Um uivo profundo, de duração infinita, zuniu naquela madrugada fria, no alto do morro. Quem ainda estava acordado reagiu de forma assustada, teve ímpeto de sair para checar o que era. Não fizeram. Aguardaram de forma impaciente que a nesga de claridade entrasse pelos tijolos dos casebres. O primeiro a sair, com cuidados, foi Ernesto. Preto de um tom de pele azulado, saiu conforme o peso dos anos e o sereno que tornava o aclive do terreno escorregadio permitiam, e ao dirigir-se ao cume do morro, foi tentando recompor o mosaico de pedaços de carne e ossos que jazia ali, no descampado junto ao campo de futebol onde os "meninos" batiam sua bolinha, aos domingos e feriados. O cheiro pútrido antecipava a cena, o sangue ainda coagulando deixava pouco para deduções. Mais um desafeto fora devorado pelo ser que ele aprendera a chamar "o bicho". Vindo do interior das Alagoas, há mais de cinquenta anos, o homem, que trazia as lembranças de Palmares como um estigma de raça, de maneira dolente estabelecera-se na cidade do Rio de Janeiro, inicialmente no Morro da Coroa. Com o passar dos anos fizera um upgrade e trocara seu barraco por um maior, em Madureira. Os tempos bicudos de agora não eram melhores nem piores do que antes ou depois, eram os tempos, ele não tinha utopias. A vida toda ralando duro, como estivador no cais, depois ao se habilitar com carteira D e E arrumara um subemprego dirigindo caminhões e tratores, participara de muitos aterros que construíam uma cidade nova e moderna, onde muitos homens e mulheres tinham a ingenuidade de sonhar poder fazer parte dela. "O bicho" fizera mais uma vítima. Ele pudera inferir, de forma objetiva, que era um adolescente, a julgar pelos membros tenros e as tatuagens. Em algumas horas o que restava do corpo seria incinerado ou jogado aos porcos. Uma das impressões, gravada em um dos braços, desprendidos do tronco como um boneco desarticulado, era uma imagem agora distorcida de São Jorge.
As chacinas aconteciam de forma intermitente, todos sabiam. Os assassinatos com evisceração e queima de provas já faziam parte da rotina dos moradores da comunidade, tudo era blindado pelo silêncio dos inocentes, imposto pela maldade dos algozes. A lei era translúcida e marcial, vacilou "o bicho" pegava, barbarizava, triturava e estripava, de modo randômico e inabalável. Diziam em reuniões de família que ele tinha um focinho longo, os pelos que recobriam a carcaça eram como os de um urso ou um porco-do-mato, que em pé devia medir quase dois metros. As patas que pisavam de forma pesada deixavam rastros, sempre deixavam, porém, não levavam a lugar algum. As partes que restavam, ensanguentadas e disformes, principalmente a face, eram deixadas até o amanhecer, como se houvesse a obrigatoriedade de reconhecerem o não-corpo, que nem sempre era desconhecido. Luluzinho foi um dos que tiveram que atestar seu óbito. Cria do lugar, tinha pouco mais de quinze anos, quando entrou para o tráfico. Cooptado com promessas não de um mundo melhor, mas menos miserável, ele era filho de um próximo de Ernesto. O velho tentara até dar uns toques, mas a juventude tudo sabe. Ao ver o rapazola exibindo portentosos cordões fulgurantes, ao vê-lo deslizar com tênis importados, roupas coloridas e caras, além de outras ostentações que encantavam algumas meninas e meninos do local, desistiu de falar algo. Sua velhice lhe trouxera alguma sapiência, além dos reumatismos e do coração cansado. A vacilada que Luluzinho dizem que deu com o chefe do momento foi sua sentença de sumário desmembramento. Foi em um dia da consciência negra que seus restos, imortais nem para a família, foram cremados pelo forno de barro construído para fazer tudo voltar ao estado original.
Ernesto já não contabilizava mais as vítimas do "bicho". Semana sim, na outra também, mais um cadáver pairava aos pedaços, espalhados na ravina. Os meninos não davam mole, tomavam volta, desacertos, e lá ia mais um corpo eviscerado pela criatura, que dizem voltava a ser homem tão logo a manhã despontava no leste, na forma de chuva ou de sol, precedidas por aquele ganido interminável. Não havia tempo feio ou bonito. Nessa manhã, de um cinza pantaneiro (diziam que as cinzas dos animais mortos haviam contornado a Serra da Canastra e percorrido quilômetros pela vontade dos ventos, chegando aqui como que para avisar que estava tudo morrendo) pouco mais de uma dezena de moradores da comunidade veio testemunhar a cena. Umas três ou quatro evangélicas clamaram pela paz do senhor, que essa se estendesse ao morto da vez. Só uma beata da igrejinha que ficava perto do sopé do morro, em um dos acessos, pôs-se a orar um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, não muito alto, católicos praticantes eram agora minoria. Pai de Cláudio de Xangô veio invocando baixinho seu cântico, mas nada que pudesse ser audível, cada vez que um morria ele parecia mais exausto e descrente.
A polícia nunca se meteu. Dizem que a criatura que matava era um miliciano infiltrado entre os meninos. Nunca se soube de fato se a informação procedia. Dizem que rituais de invocação à Besta eram feitos antes de cada homicídio, mas o velho negro, cuja altura um dia havia sido próximo de 1,80, não chegara a saber dos detalhes. Seu poder investigativo esbarrava no silêncio tumular dos habitantes que tinham suas casas no caminho do campo. Havia uma espécie de pacto instituído ali, que fora feito para não ser contrariado, sob pena de execução, ou de avisos que eram traduzidos pela marcação de um X em sangue na porta do ameaçado.
Uns tempos se passaram até que houve briga de facções, coisa feia. Mataram o Carlinhos, o subchefe, em uma emboscada na Região dos Lagos, foi o que noticiaram. O mais alto na hierarquia estava trancafiado em Bangu, mas de lá tudo olhava e tudo via, seus olhos e membros eram como os de um aracnídeo ou de um polvo, de lá de sua cela ele controlava o movimento, as invasões, e até quem seria a bola da vez da "fera". Mas dessa vez, milicianos se amasiando com outra horda de meninos tomaram o morro. Eram de uma crueldade sui generis, inédita até para quem havia visto de um muito, como Ernesto, que naqueles dias completaria oitentinha. Eles passaram não só a eliminar desafetos, mas implantaram uma roleta brasileira, onde quem não pagasse um dízimo entrava para a black list. O monstro mítico estava pronto para atacar, sedento de almas, a fazer sua limpeza sem conceitos étnicos ou sociais, afinal todos estavam na mesma indefectível merda.
A mistura de lobo com gente não poderia ser apenas um ser, era múltiplo, como tinha que ser, não havia como ser uma mutação, um alienígena do presente, nada disso. Tudo levava a pensar que o monstro era nada mais, nada menos que um homem fantasiado; sim, era isso, um homem que portava uma vestimenta de urso ou pé grande, um troféu que passava de vencedor a vencedor, uma tradição que ganhara imortalidade ao longo dos anos, que se aprimorava em sua técnicas de morte, de dissolução, um tipo de true new que tornara-se uma incontestável verdade, quase impossível de ser combatida. A lenda do bicho que matava os inimigos dos meninos ou os devedores, que comia suas entranhas e espalhava os membros ganhara tal notoriedade na cidade que poucos queriam chegar perto daquele morro de Madureira, a terra do samba, das mulatas, do carnaval, da alegria banhada de sangue e lágrimas. O morro do lobisomem era um fato que inclusive já virara marca registrada, e havia os que se locupletavam disso, dando uma de malandro. Excursões para ver os pedaços de corpo que com o tempo passaram a ser colocados em formol e nomeados, como se experimentos inumanos fossem, transformou-se em algo corriqueiro, assim expostos em espécies de estantes fechadas com grossos cadeados, após os fins de semana turísticos. A ideia foi encampada e chancelada pelos novos meninos, era evidente. Uma expansão de negócios, assim era vista a nova empreitada, e até que um novo líder surgisse, ficaria assim para um longo sempre.
Waldir Barbosa Jr.
@anfetaminadialetica
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