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O medo do artilheiro diante do pênalti

Atualizado: 15 de out. de 2020

Um dos contos de Um Rio chamado Futebol, lançado pelo Clube de Autores


O medo do artilheiro diante do pênalti
Um Rio chamado Futebol

“Ele queria dizer alguma coisa, mas não lhe ocorreu então o que queria dizer. Tentou lembrar-se: não se lembrou do que se tratava, mas tinha a ver com asco.”

O medo do goleiro diante do pênalti, Peter Handke



43 do segundo tempo. Bola passada por um de meus companheiros de ataque, é jogada na esquerda. Eu driblo de forma humilhante o adversário, evoluo dentro da grande área, sou derrubado de forma clara, não tem como questionar, pênalti. Os adversários ainda assim peitam o árbitro, pensam com isso que o lance voltará no tempo, que a fita rebobinará, que os erros cometidos serão apagados. Crime que cometi, pecado infligido, o rosto de Marisa vem à mente. O corpo nu estirado na cama, atrás do gol, sibila de pé no ouvido do goleiro, o menos vazado do campeonato, pegador nato de pênaltis. Expiação de culpa, relembro os olhos baços de Marisa, brancos, paralisados, fitando a estante de livros que nunca li, nem lerei, pra que isso?

A torcida grita meu nome em coro, dizem que vou pegar, deveriam dizer que vou marcar, mas compreendo, tento compreender. Sou um artilheiro, 15 gols no campeonato, não sou de perder pênalti. É dar dois, três passos para o lado, em suave diagonal, uma breve e quase imperceptível paradinha, escolher o canto, bater forte na redonda e partir para a galera, para o orgasmo, para o corpo nu de Marisa. Corpo sem pelos, quase um corpo de boneca, implorando que eu me apresente, que converta em uivos o que os gritos da torcida esconderão. Na minha paralisia não restará muito tempo para fugir, sair daqui e pegar o primeiro avião rumo às Bahamas, às Antilhas, talvez depois de me esquecerem jogarei em um time da segunda ou terceira, quem sabe até na elite de lá, apadrinhado por algum político influente. O corpo de Marisa suspenso, a rogar todo tipo de praga, não me deixa raciocinar, não sei se bato no canto esquerdo ou direito, o direito sempre evito por motivos óbvios, o esquerdo à meia-altura é meu predileto, sinceramente não sei. Parto para a bola, antes de atingí-la refugo, igual a um cavalo diante de uma escada, ou defronte ao abismo. A bola por esses efeitos mágicos de cinema vira uma esfera de ferro, eu atado a ela por correntes, mas ao mesmo tempo sei que em nosso país não se pune ninguém com grilhões de ferro. Penso se não poderei negociar, colocar a trupe de advogados caros propondo uma acordo que favoreça antes de tudo a mim, pois tudo que me favoreça sou radicalmente simpático. Mas o momento é fúnebre e solene, não sei o que acontecerá, o que não posso é diante do goleiro tremer, sou artilheiro de aço, não posso nem pensar em pipocar agora. Depois do arrependimento virá o acerto de contas com o Criador, mas isso ficará para depois. Parto de novo, dessa vez não há volta, os companheiros já me olharam torto, agora é à vera, chega de reflexão e brincadeira, não sei porque acho que vi dois sujeitos vestidos com farda policial, são dois meganhas esperando o fim do jogo, ou que eu perca o pênalti. Querem fazer chacota de mim, filmar o bobo e assassino de mulheres aqui e colocar na internet. Bem provável que as fotos do corpo inerte de Marisa já estejam circulando, a turma de abutres curiosos especulando a identidade do assassino, de quem teve esse surto de loucura, a frieza de empunhar o travesseiro e diminuir o ar da mulher até o último suspiro. Assim, de forma covarde, sem direito à defesa, por motivo que não tem defesa. Já chega, estou em rota de colisão com a redonda, vou com toda a fome, encho o pé com os olhos semi-abertos, tenho muito medo, acho que não escapo, temo pelo fim, bato o pênalti da minha morte decidindo que será minha absolvição, irão sempre lembrar de mim.


Waldir Barbosa Jr.


Um Rio chamado Futebol

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