O relógio de Poe
Atualizado: 15 de out. de 2020
Baseado em fatos irreais
Vi-os contorcerem-se numa frase mortal; vi-os pronunciarem as sílabas de meu nome - e estremeci
O Poço e o Pêndulo, Edgar Allan Poe
A conexão Rio-Nova York se deu sem maiores atropelos. Menos de treze horas após embarcar rumo à capital cultural do planeta encontrava-me em um quarto limpo, com água quente e farta, roupas de cama perfumadas e limpas, tudo no padrão de hotel classe A. Era por volta das dez da noite, estava bastante cansado, mas o estado de excitação por estar em um dos centros do universo fez com que fosse em busca de um night club nos arredores. Eu arranhava um inglês misto de curso barato com tradutor do google, mas até que consegui chegar em menos de meia hora ao local que buscava. Fiquei em um canto sossegado, relativamente longe da balbúrdia, e pedi tão logo sentei uma caneca de Guiness flavorizada, uma maravilha. Eu contava as horas para o leilão da Christie's, que estava marcado para iniciar às 13 horas do dia seguinte. Próximo uma tv de led passava shows de várias bandas de rock nacionais. Eu, em meio a uma série de zaps, confirmara a minha chegada àquele que me pagara muito bem para estar ali. Eu levara meus melhores terno e sobretudo, ainda que o clima fosse bem ameno, com temperatura que provavelmente não ultrapassava os 25 graus. Também levava comigo uns três cartões de crédito internacionais com excelente limite, mais que suficiente para a obra que meu agenciador incumbira-me de arrematar pelo preço que fosse. A admiração dele pelo dono original da peça era enorme, quase messiânica, e eu não me imaginara em instante algum fracassando em minha tarefa. Edgar Allan Poe fora o seu primeiro possuidor, e ao saber que era ele, senti-me até importante. Meu contratante não podia sequer ter uma letra de seu último nome revelada, mas adianto aos senhores e senhoras ser cidadão ilibado e de alta estirpe, pagador de seus impostos, colecionador contumaz de obras de arte, um cultivador da cultura universal, sacra e pagã. Por motivos óbvios, posso lhes dizer apenas que era meu amigo de infância; crescemos juntos até certo período, até que pelo fato de minha família ter entrado em um buraco negro, engolida por escândalos financeiros envolvendo Bolsa de Valores e Mercado negro de arte, vimo-nos na condição de estranhos por algum tempo, mas ao reencontrá-lo anos depois, meu amigo e contratante, entendendo minhas necessidades vitais, condoeu-se de minha iminente miséria burguesa e passou-me a dar missões dessa monta, muito bem remuneradas.
Após mais duas ou três cervejas voltei para o quarto. O cansaço da viagem despencou sobre mim de maneira avassaladora. Agora uma leve dor de cabeça chegara, solerte, esgueirando-se por minha silhueta. Tomei uma aspirina e joguei-me na cama sem puxar o lençol, só lembro de tirar o paletó, as botas e cair morto, tendo o devido cuidado de colocar o smart para carregar. Ao adentrar no sono profundo, sonhos e pesadelos começaram a sobrepor-se e a misturar-se; de um lembro e posso relatar com detalhes, pois ficaram-me impressos na memória:
Estou deitado na cama do hotel, a fechadura faz barulho ao destrancar e ouço passos em minha direção, cada vez mais próximos; abro os olhos mas apenas vislumbro um vulto que aos poucos se transforma em uma pessoa antiga, com vestes datadas de uns dois séculos, a sobrecasaca um tanto puída cobria o homem pequenino, de cerca de um metro e sessenta, no máximo. Era branco, mas mais puxado para o amarelento, efeito talvez da ingestão de muito whisky; o bigode de fios pouco espessos cobrindo os lábios finos era uma de suas principais características físicas, além da cabeleira também negra, emoldurando a testa proeminente de uma cabeça avolumada e desproporcional ao corpo. Sua aproximação foi sucedida por apenas uma frase: "Arremate o relógio e depois o devolva a mim".
Logo após ouvir o que dissera com certo espanto, acordei do transe onírico sobressaltado, suando muito para uma temperatura bastante agradável que pairava no quarto, de modo que ao levantar da cama, precisava desesperadamente de água; sua frase assertiva intimando-me a arrematar a relíquia e devolvê-la a ele me pareceu deveras absurda. Como poderia cumprir minha tarefa encomendada por tamanho peso e depois entregar a um morto, assim, sem lógica nem a mínima coerência, sem uma nesga de motivo? O primeiro round era obter a todo custo o artefato, mas ainda assim não poderia devolvê-lo ao primeiro dono, afinal, era tão somente um fantasma ou um espectro vindo sabe-se lá de que mundo para pleitear o que supostamente era dele, quando a esse não cabia mais nada que fosse material, quem sabe uma prece em uma igreja presbiteriana, mas não seu relógio de corda, isso não lhe pertencia mais, nem a ele nem a ninguém que houvesse existido depois dele, pois fora vendido em vida para um alfaiate, com o fim de saldar dívidas. Isso se deu em 1842, quando o dono legítimo declarou falência diante de tantos credores em busca de seus já parcos recursos.
Demorei bastante a dormir de novo. Não lembro de sonhar, a figura um tanto macabra reboava em minha mente, ao ponto de me acompanhar até à Christie's. Agora era meio-dia, eu fizera uma caminhada de 12 minutos até à galeria, que fica no Rockfeller Center. A Sexta Avenida funcionou como um périplo que só incentivara meus pensamentos a circundar a alma daquele que tão somente podia ser o autor de O Corvo e tantos contos funéreos, que eu lera quando adolescente. William Wilson, Berenice, Ligeia, O Gato Preto, O Barril de Amontillado, O Demônio da Perversidade, O Poço e o Pêndulo (um meus prediletos) haviam me marcado para sempre. Claro que a missão a qual fora enviado para concluir tinha relação direta com o escritor e sua obra; eu me imaginava no avião desfrutando do prazer de tocar aquele mecanismo de marcar o tempo que pertencera a alguém que eu tanto admirava e até tentava imitar em minhas redações e textos na faculdade de letras, que abandonei.
Faltavam cerca de 10 minutos para começar. Ao entrar, o local já se encontrava bem cheio. Procurei meu assento marcado, que ficava na terceira fileira de confortáveis cadeiras revestidas de veludo. Eu peguei e li com atenção a programação de leilões do dia, a peça seria a quinta do rol de antiguidades a serem negociadas. Isso fazia com eu estimasse em pelo menos uma hora para enfim poder fazer meu primeiro lance. Decidi levantar um pouco e tentar ludibriar a ansiedade. Meu contratante no Brasil estava devidamente informado do andamento do leilão, claro que não comentara nada de meu encontro espectral, não desejava ser julgado louco e impedido de participar daquele momento.
Fui para um local reservado a fumantes, abri meu primeiro maço em dois anos, não contive o nervosismo da espera. Assim que a fumaça fez seus arabescos no ar, por trás dela algo de estranho e surpreendente formou-se: era a figura da noite anterior, ainda mais nítida, e mais sinistra! Seus olhos tristes estavam arregalados, o pescoço envolto pelo lenço escarlate só fazia destacar a gravata de laço negro que ele vestia. Seu braço ergueu-se em minha direção e sua boca abriu, como se quisesse falar algo, mas dessa feita não saiu nenhum som, nada que eu captasse; ele parecia apontar para algo atrás de mim, para algo que não pude saber o que era, pois ao piscar os olhos no intuito de me certificar de que não estava acometido de insanidade o fantasma desapareceu, sem dizer palavra.
Senti-me obrigado a lograr êxito. Agora eram dois a me imbuir da tarefa, aquele que me contratara e o provável verdadeiro dono do relógio. O que faria eu se conseguisse? O levaria para o Brasil? O devolveria a algo ou alguém que não sabia se existia realmente? Seria para sempre considerado por meu incumbente persona non grata, e correria o risco de ser preso por apropriação indébita, fora a óbvia probabilidade de ser caçado e vir a ser extirpado desse mundo, fazendo companhia ao fantasma que me ordenara que o devolvesse.
Ao retornar a minha cadeira faltava apenas um item para que o relógio fosse afinal exposto. Contei os minutos até que o artefato de medição do tempo surgiu na tela! Seu brilho magnífico ofuscava a visão, tamanha irradiação solar; o leiloeiro, em tom solene, descreveu-o como uma antiguidade rara, de mais de duzentos anos, que ficara em poder de uma família mais da metade desse tempo, até passar também pela guarda de dois colecionadores, o último a teve em seu poder cerca de quarenta anos, e agora estava ali, a passos de minhas mãos.
O lance inicial logo foi superado; eu fazia lances a cada três ou quatro movimentos de braços dos interessados, estávamos agora beirando a estimativa máxima, cento e vinte mil dólares. Uma senhora idosa, de fartos cabelos argênteos, e um homem de barba parecendo ter a mesma idade que eu faziam lances contínuos, o que significava dizer que eu tinha dois fortes e abastados concorrentes. Eu chegara próximo do teto estabelecido por meu agenciador, a tensão estava à beira do limite, a corda não aguentaria muito mais, até que de maneira pacífica meus dois oponentes baixaram a guarda, e pela bagatela de 150 mil dólares eu afinal conseguira sucesso em minha empreitada! O relógio de Poe era meu, quero dizer, de meu contratante.
Saí dali dispensando a escolta oferecida. Temerário? Gesto insano? Tenho convicção que sim. Eu recebi o objeto de ouro dezoito quilates envolto em um pano grosso camurçado, que por sua vez era envolvido por uma caixa de madeira de lei datada da mesma época do relógio. Eu dei uma olhada de admiração antes de guardá-lo na caixa, depois de verificar que se tratava de uma peça original. Na parte de trás a gravação tentava imitar a assinatura: Edgar A. Poe. A fábrica que o confeccionara era francesa, bem identificada pelos dizeres que contornavam o nome do primeiro dono: Echapemment a cilyndre en pierre e Huit trous en rubis.
Voltei a pé fazendo um caminho alternativo, seguindo pela Quinta Avenida. Eu sentia-me um dos senhores do mundo, proprietário do que não era meu, obviamente eu arriscara minha pele portando uma joia de quase 600 mil reais debaixo de meu paletó, porém algo me afirmava que nada poderia tomá-la de mim. Decidi margear para admirar o East River. Fiquei cerca de 30 minutos contando as luzes da cidade começando a pipocar aqui e acolá, a noite nascendo em Manhattan era incrível; tive o comichão dos curiosos de abrir novamente a caixa, mas me contive, volta e meia uma turma aparecia conversando em voz alta e tive receio de desconfiarem de que trazia comigo algo tão valioso. Eu já comunicara ao meu contratador de que tudo dera certo, agora era o tempo de passar a noite no hotel e pegar o avião das 10; no fim do dia seguinte ele estaria admirando sua peça preciosa. Contornei a Rockfeller University e segui para o pernoite. Honestamente eu ainda tinha o ectoplasma ecoando sua frase em meus ouvidos, seu olhar infinito transpassando o meu; ainda não tinha a convicção de que iria fazer o certo, não sabia mesmo o que era o certo, parecia por demais insano ceder ao apelo de um espectro que eu tinha como de meu escritor preferido, despertado das tumbas cento e setenta anos depois de deixar esta terra, vítima supostamente de Delirium Tremens. Quem delirava sem febre era eu, quem alucinava era eu.
Minha noite nunca teve fim. Ao enfim ser vencido pela cobiça e pela perfídia, fui também combalido por funesto infortúnio. Encontro-me nesse momento isolado do mundo, há cerca de cinco longos anos. Ouço vozes dizerem que nunca sairei daqui. Meu contratante teve a misericórdia de pagar pelo tempo que estou aqui, em uma casa de loucos. Ele espera que um dia eu lhe revele onde escondi seu relógio de ouro. Eu não me recordo de nada após o instante em que abri a caixa. Não, havia aquele vulto a me espiar, o mesmo que me olha agora, velando todos os meus momentos, todos os meus gestos; não há dia, noite, tarde ensolarada ou nebulosa em que ele não me visite, e me olhe com olhar triste e agradecido. O relógio, está em algum lugar, bem longe do tempo.
Waldir Barbosa Jr.
Imagem: site da Christie's
Obrigado querida amiga pelos comentários, abraço fraterno!
... Ainda bem que não é "meia-noite" ... haja "coração revelador" para ler esta peça ... um forte abraço "poeano"!