Os 10 livros da vida inteira (romances)
Atualizado: 4 de mar. de 2019
Livros que não deixo de reler
Amigos e amigas, há livros que marcam, não tenho dúvidas; obras que nos encontram na juventude, obras que encontramos em uma biblioteca pública na faculdade, ou que nos presenteiam, fruto da percepção do Outro de que precisamos dela para nos tornarmos mais humanos, ou não... Na idade madura voltam, como uma saudade que jamais nos abandona, e precisamos novamente dialogar com ela. Ah, os livros...
Eis os 10 romances que mais me impactaram:
1. Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa)
o diabo no meio da rua, no meio do redemunho.
Não há como não ser esse meu number one; a história dos jagunços em fight pelo agreste mineiro na década de 40 do século passado, em ritmo de faroeste filosófico, discutindo vida e morte/bem e mal é um clássico que me pegou ainda na juventude. Lembro que minha mãe Eudes o comprou para mim no Círculo do Livro, um clube ao qual me filiei e que todo mês entregava uma revista com diversas obras maneiras paca, em novas edições. Capa dura, mais de 500 páginas, lembro de degustar a linda história de amor entre Riobaldo e Reinaldo desconfiado do que rolava, eram other times, sem tanto patrulhismo e bandeiras desfraldadas com tanta veemência, mas independente do que parecia o texto genial de Guimarães Rosa seduzia, com sua revolucionária linguagem, onde semântica, ortografia e sintaxe adquiriram um sentido incrível e marcante para mim.
Anos depois a Globo produziu uma minissérie, com Tony Ramos no papel principal e uma turma de atores fantásticos fazendo o elenco de apoio, onde até Bruna Lombardi, aliando uma beleza impactante a uma ótima atuação, foi mais que convincente no papel de Reinaldo.
2. Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis)
a obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Certa feita, coisa de 30 anos no túnel do tempo, eu tive a "mirabolante" ideia de escrever um livro onde a personagem principal estivesse para lá desse mundo, sendo um autor defunto, mas pasmei diante da incrível descoberta de que "apenas" cem anos antes um autor, fluminense à época (carioca hoje), já havia tido essa sensacional iniciativa, e mais boquiaberto fiquei ao saber que se tratava de um genius: Machado Bruxo do Cosme Velho de Assis...
O que acontece então? Como em uma grua, que lhe dá "A" perspectiva, a personagem principal, Brás Cubas, começa a nos contar sua existência antes da morte, em esclarecedores flash-backs...
Inventor juramentado do Emplasto Brás Cubas, capaz de curar a melancolia de nossa miserável e cativante humanidade perdida; ele deixa esse mundo antes que a tal panaceia fosse produzida em larga escala, dando fim ao quixotesco dream de curar as feridas existenciais da galera do século 19.
Misto de calibrada ironia fina e crítica social, característica principal da fase realista ultra moderna de Machado, o livro da idade madura é o clássico entre os clássicos da literatura brasileira e vai além fronteira final; não há o que retocar, você se encanta já de cara com a dedicatória: Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.
Entre uma belezura de sarcasmo refinado e uma apunhalada na hipocrisia que nos permeia, há momentos também de genuíno amor, que dão um toque neo-romântico á trama, mas há um texto dentro da obra que destaco e que me levou a ler o livro todo; é uma espécie de mini-conto, chama-se
O Almocreve:
VAI ENTÃO, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dous
corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou preso no estribo, tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já então, espantado, disparou pela estrada fora. Digo mal: tentou disparar, e efetivamente deu dous saltos, mas um almocreve, que ali estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.
--Olhe do que vosmecê escapou, disse o almocreve.
E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, lá se me ia a ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-no no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! enquanto eu tornava à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse o preço da minha vida,-- essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está dito, dou-lhe as três moedas.
--Pronto, disse ele, apresentando-me a rédea da cavalgadura.
-- Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim. . .
--Ora qual!
--Pois não é certo que ia morrendo?
--Se o jumento corre por aí fora, é possível; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que não aconteceu nada.
Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e
durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo, que o "senhor doutor" podia castigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.
--Olé! exclamei.
-- Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...
Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a circunstâncias de estar, não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituí-lo simples instrumento da Providência; e de um ou de outro modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive remorsos.
3. Memórias do Cárcere (Graciliano Ramos)
"resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos."
Escrito nos hard years de 30, em plena ditadura Vargas, Memórias do Cárcere é desses livros profundos, aliás como toda a prosa seca e dura do escriba alagoano, de tradições rústicas e estilo próprio, sem muitas metáforas. Com ele pau é pau, pedra é pedra, e elas rolam bonito, meus e minhas camaradas! De posição declaradamente comunista, Graciliano Ramos foi acusado de participar da Intentona Comunista de 35 e preso sem provas; sua descida ao inferno-porão de um navio que o conduziu de Maceió à prisão no Recife resultou em suas memórias desse cárcere, e ele expõe seu libelo contra as arbitrariedades do establishment em tom de denúncia, mas por veios próprios. Em dois volumes que foram supostamente censurados pelo Partido Comunista - ao qual o escritor era filiado -, o texto flui desvelando as mazelas provocadas por um regime intolerante, marcado por prisões sem justas causas, que implodia quem fosse de encontro a ele, fazendo cair a máscara de suas incongruências e hipocrisias. As passagens no navio singrando turvas águas de Maceió a Recife, onde descreve amigos e desafetos que teve ao longo da viagem, assemelham-se a um purgatório, um tombadilho dantesco moderno, onde negros e brancos coexistem em uma insólita harmonia.
4. São Bernardo (Graciliano Ramos)
começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta quilos e completei cinquenta anos pelo São Pedro
Paulo Honório é dono de uma fazenda, a São Bernardo. Sua vida é uma sucessão de fatos e erros, na concepção dele. Sua trajetória é uma pedreira que ele enfrenta de maneira à vezes temerária, mas há alguma coragem, uma resoluta forma de tocar a vida. Lembro de ler também esse livro para minha mãe, junto à máquina de costura que ziguezagueava para nos dar o sustento, a mim e meus irmãos. Nessa época já estávamos instalados em Inhaúma, subúrbio do Rio.
São Bernardo é a história de um homem que em meio a ganância, a frieza para encarar as intempéries da existência e muito destemor, semelhante aos filmes de faroeste da Sessão da Tarde e que agora passam no Cult, percorre mundos e os submundos de sua consciência para cumprir ao que se destinou: ficar maduro de rico. Concluímos então que trata-se de enredo meia-bomba e de um personagem enfadonho tecendo seus planos megalomaníacos? Nada disso! São Bernardo é uma obra mais que prima, é necessária de ser lida, principalmente nos tempos de agora. A ênfase no enfoque capitalista, fazendo que Paulo veja a tudo e a todos como força de trabalho, a quem se deve tirar até a última gota do caldo, é colocada a serviço de um desvelamento que vai acontecendo com o passar do tempo, entidade viva e onipresente na vida do protagonista. Nem o amor, representado na figura da professora Madalena, passa batido, mas vem limado na tosquidão do agreste perene em que nos coloca com maestria e verdade pura a pena elegante do gênio Graciliano Ramos.
e eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.
5. Capitães da Areia (Jorge Amado)
Li Capitães da Areia pela primeira vez quando tinha uns 13, 14 anos; lembro de ler trechos em voz alta para minha mãe, Eudes, que à beira de uma máquina de costura cerzia conforme podia os furos que a morte de meu pai deixara. Uma turma dos que costumeiramente chamam de pivetes, meninos sem teto e sem lei que balizasse suas existências, vivendo de um modo loca vida um dia após o outro, como dependentes de drogas ou álcool, esse é o mote principal da trama do escritor baiano Jorge Amado. Ficou claro para mim que a maior carência era mesmo de familiares honestos, de chamegos e de algum afeto. Liderados por Pedro Bala, um adolescente de uns 15 anos, o grupo vive de pequenos furtos e roubos, trilhando o universo mundano de Salvador como quem faz seu rito de iniciação urbano, em plena Bahia na década de 30. Perseguidos pelas forças da milícia local (leia-se polícia), os garotos e a única menina que os acompanha - Dora - vão transformando-se em adultos antes da hora, onde a precocidade os leva ao meu pirão primeiro da sobrevivência, sem nunca perder de vista o tênue horizonte de liberdade que os separa do mundo pequeno-burguês.
porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele.
Não sei ao certo se pelo fato de ter quase a mesma idade dos garotos do bando, conhecido como Capitães da Areia por se abrigarem em um trapiche abandonado na praia, eu que vivia na minha crise por diversas razões, me identifiquei bastante com o tema, e fiz dele uma espécie de livro para pensar na vida como ela é e como poderia ter sido.
6. Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski)
era uma mulher pequena e seca, com cerca de sessenta anos, olhos brilhantes e malignos, nariz pequeno e pontudo e cabeça descoberta. Cabelos grisalhos, cabelos brancos e grisalhos eram untados com óleo.
Crime e Castigo é uma porrada ampla, geral e irrestrita no modo de existir, afirmo sem ter receio de errar; escrito pelo russo genial Fiódor Dostoiévski, que sofria de epilepsia e de outros males que talvez hoje fosse diagnosticado como um esquizofrênico-paranoico, um lunático visionário, tanto que por supostamente tramar contra o czar Alexandre I foi preso e permaneceu quatro anos na Sibéria, de onde tirou rico material para escrever outra obra-prima, Recordações da Casa dos Mortos, um brilhante título para um livro que trata de seu cotidiano no cárcere.
Anos depois de Recordações veio outra de suas obras-primas: Crime e Castigo; tratando do tema da culpa ante os cânones cristãos, o livro percorre vários anos e tem várias tramas paralelas, mas para mim o crime e a consciência da morte são tão importantes quanto a personagem central, um estudante de direito com parcos recursos, Rodion Raskólnikov, que em meio a assassinatos tem seu momento de redenção, que acontece paulatinamente ao longo da enredo. A culpa como resultado direto dos atos do protagonista nos inquieta e atemoriza o tempo todo da leitura, fazendo as vezes de fantasma justiceiro, ao ponto de querermos salvar sua alma impura, seja pela libertação através do desencarne, seja pelo cumprimento de seu castigo.
Esforçando-se por comprovar a tese de que no mundo habitam seres banais e seres acima dos conceitos de Bem e Mal (ordinários/extraordinários) Raskólnikov-Dostoiévski trilha sua via crucis como sua dignidade entende e permite, e ao fim ficam mais dúvidas que certezas. Um livro para a vida inteira sem dúvida.
7. Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez)
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo...
Dizem que um bom livro nos arrebata logo no começo, do que não discordo. Ao ter o grosso compêndio de bolso em mãos, escondi-me por alguns dias da civilização inhaumense e pus-me a devorá-lo; a cada virada de página ia do começo ao fim das linhas e engatava a próxima, sedento pelo que viria por acontecer. A cada personagem novo que surgia, em um enredo paralelo que ia se entrecruzando com outro em determinado momento, formando uma enorme árvore genealógica onde os galhos iam se ramificando aparentemente ao infinito, eu me deleitava, torcendo ora por um desfecho, ora prevendo outro. A história transcorrida em Macondo, fictícia cidade fantástica criada por Garcia Marquez para encenar seu grande romance, é absolutamente fascinante!
Misturando argúcia única, característica de um excelente contador de histórias, como o próprio Gabriel se dizia, com toda a verdade, ser, com profundas técnicas de escrita, o escritor descreve várias gerações de duas famílias, a dos Buendía - Iguarán, que juntas dão início a uma saga de um século de amor, tristezas, alegrias, sexo e reviravoltas políticas e sociais, que evidentemente encontram analogia com qualquer cidade da latino-américa.
Após comprar uma nova edição em uma Bienal do Livro, se não me engano a de 2009, acontecida aqui no Rio, decidi me desapegar e doei minha modesta, mas tão querida edição de bolso, onde uma Dolores desenhada na capa embalara tantas vezes meus pulsantes eflúvios seminais de adolescente. Não havia sentido manter as duas, mais prudente ficar apenas com a que morava nas páginas do livro, porém confesso que me arrependi algumas vezes (tenho esperanças sinceras de que a obra tenha sido lida e apreciada da mesma maneira que foi por mim).
8. Luz em Agosto (William Faulkner)
a memória acredita antes que o conhecimento recorde.
Tratado religioso ou libelo contra o racismo interior? Luz em agosto é uma obra-prima do escritor americano Nobel de literatura William Faulkner. As questões raciais entre sul e norte são tocadas em meio a um enredo que dosa de forma equilibrada a auto piedade do personagem principal, Christmas, por achar ter correndo em suas veias sangue negro, com a culpa cristã da discriminação. Ele se vinga de si mesmo, ao ponto de tornar-se suspeito de um assassinato, e encontra em sua jornada de inferno e purgatório mississipianos enfim sua redenção. Faulkner consegue tirar uma prosa abissal de boa de um tema cascudo, pesado ainda nos dias que correm. O discurso em terceira pessoa atira na cara da sociedade cristã pós-moderna tudo que vivemos tentando esconder pelos meandros de nossa consciência. Utilizando-se de monólogos interiores para ilustrar o que se passa na mente conturbada de Christmas, o escritor vai desnudando as partes podres que são comuns a todos os indivíduos, sem discriminação.
9. Lolita (Vladimir Nabukov)
portanto, nenhum de nós estará vivo quando o leitor abrir esse livro.
Mais uma pérola do extinto Círculo do Livro! A trama rocambolesca, roadbook por várias cidades do meio-oeste americano, com pausa para self (sic) no Grand Canyon é cinematográfica, tanto que já teve duas ou três versões em filme, uma dirigida pela não menos genial Stanley Kubrick; a história de paixão e amor de um escritor sessentão pela ninfeta ardente filha de sua esposa, com direito a idas e vindas, brigas histriônicas de adolescentes e divagações sobre o modus scriptus são maneiríssimas. O autor russo radicado nos USA, Vladimir Nabokov, revelou na edição que li, no artigo ao final do livro Sobre um livro intitulado "Lolita", que a ideia inicial era escrever um conto de 30 páginas mais ou menos e só, porém, ao relê-lo anos depois, sentiu um comichão que o levou lentamente, nas palavras dele, a estender a história até o ponto de quase incinerá-la, mas para nossa intensa felicidade literária em 1955 a obra foi integralmente publicada. Claro que até para os mais safadinhos espíritos em certos momentos vem à mente o termo da moda de uns tempos para cá: PEDÓFILO! Mas, sem falsos moralismos de rede social, o livro arrebata pela escrita mágica de Nabokov, que nos presenteia em diversos momentos com um punch na boca do estômago de nossas convicções. Quem não? Que não há de?
10. Ensaio sobre a Cegueira (José Saramago)
se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Ainda não comecei de fato a lê-lo, mas sei que será um dos meus top ten. Perguntas? Respostas? Dezenas, centenas, milhares. Enquanto digo isso já beiram os milhões. Sei que só terei silêncios por ora para vos dizer. Mais breve que possas supor, tentarei ver, ler, reparar. O que sei do livro vem de reminiscências do filme do Meireles, que registre-se, na verdade não gostei. Talvez a escolha do elenco tenha sido o problema, certamente não foi o texto do Saramago, que comecei a ler, pelas orelhas, um tantinho aqui, uma meia página acolá; a edição é de minha filha, Ariadne. O português português tem uma sonoridade bacana em prosa, bem provável por ser o Saramago, que escreve bem demais. Por enquanto vai o ensejante prólogo:
O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porém assim lhe chamam. Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora, aparentemente insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na cidade e pelas mudanças sucessivas das três cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente.
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.
2ª edição, Cia das Letras.
Minha vida são esses livros abertos, e para vocês, quais seus livros da vida inteira?
Um abraço literário!
Waldir Barbosa Jr.
Imagem de abertura: foto de acervo pessoal
Demais imagens: acervo pessoal e de internet
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