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Os Demônios de todos nós

Atualizado: 14 de jan. de 2022



Os Demônios de todos nós
Dessa vez não era a morte, mas a certeza inelutável do que mais cedo ou mais tarde havia de acontecer.

Do amor e outros demônios, Gabriel Garcia Marquez


Quando me apaixonei por Rosinha nós tínhamos uns 18 e alguns meses. Já fora alertado que ela sofria de achaques, precedidos por um terrífico revirar de olhos e por tremores corporais que pareciam vir das trevas mais profundas, das quais viemos e às vezes - ou quase sempre - nos lembramos. O filete de vômito verde saía de sua linda boca de lábios carnudos, volumosos e prontos para o afago dos beijos mais secretos que ela me dava, como se conhecesse os mistérios inalcançáveis, como se seguisse na íntegra as lições de algum séquito de bruxas.


Passávamos os fins de semana juntos, e como não trabalhávamos ainda, acabava ficando mais fácil convencer seus avós maternos a me deixarem assistir com ela a filmes antigos e escutar a boa música que apreciávamos. Rosinha gostava como eu de rock progressivo e de muita MPB, (Chico Buarque, Belchior, Elis, essa galera de qualidade nos mantinha politizados em face da "abertura" do governo Figueiredo). Naquele tempo ainda éramos ingênuos ao ponto de acreditar que podíamos fazer parte de uma revolução de costumes e ajudar a mudar o quadro juntando as forças e indo às ruas; no movimento pelas diretas-já, em 82, ainda não éramos suficientemente cascudos, apesar de temos discutido bastante Karl Max, Engels e Weber, em nossas reuniões às quintas-feiras à noite, no núcleo do PT do Engenho da Rainha, subúrbio do Rio.


Enquanto namorávamos e amadurecíamos, íamos aprendendo os jogos do amor, desenvolvendo uma intimidade insuspeita e inegociável. Rosinha era minha primeira e única mulher, como ela eu me achava invencível, como se juntos fôssemos mais do que todos. Nossa força e juventude trabalhavam para nós sem parecer exigir nada em troca. Rosinha frequentava semanalmente um centro de Umbanda no Engenho de Dentro, também gostava que eu fosse com ela a um terreiro de candomblé que ficava na Baixada, mais precisamente em Austin. Uma vez a cada dois meses ela ia ao encontro de Mãe Lilian de Oxum, fazer se consultar com os búzios e fazer seus pedidos aos orixás, à procura de respostas para seu problemas; ou melhor, para nosso problema, já que em seus momentos de transes violentos, - em que eu poderia jurar que Rosinha virava numa espécie de capeta -, algo ou alguém tomava conta de seu corpo, flertando livremente com sua alma. Quando vinham os frenesis no terreiro, minha namorada e futura esposa se contorcia, ensaiava ficar nua, gesto que era contido pelos filhos de santo da casa, aqueles que ajudavam a manter o ilê de Mãe Lilian funcionando de forma organizada, pronto a atender os que de ajuda precisassem. Claro que isso tinha uma contrapartida, Rosinha uma hora tinha que tomar sua decisão. Ou entrava de vez para a “casa”, ou seria eternamente levada a se olhar no espelho e não se reconhecer, a face transfigurada, como a de um cão furioso rosnando para tudo e para todos, tomada pelo espírito demoníaco de um ser que eu só conhecia de passagem. Não preciso dizer o quanto de conflito tudo isso provocava, eu em minha imaturidade em lidar com o desconhecido a pressionava a não mais frequentar Mãe Lilian, não via em seus sacrifícios em equilibrar fé e empirismo racional nenhuma utilidade prática. Meu obscurantismo me impedia de ver além do invisível, e diante da impenetrabilidade dos argumentos que Rosinha defendia com sua sapiência de alma secular, muito além dos tempos idos, acabei capitulando, ainda que nosso enleio volta e meia tivesse que passar por embates turbulentos, nós quais a tensão causada quase esforçava o amor incondicional que sentíamos um pelo outro.


Em uma calmaria, houve um dia que foi derradeiro, espécie de átimo fundamental de nossa convivência, Rosinha me revelou um desejo que não me contara ainda: queria que eu a levasse ao Maracanã para assistir a um jogo onde estivesse presente uma grande multidão. Confessou que esse tipo de tentação desde menina a acompanhava, mas nunca tivera coragem nem liberdade de comentar tal vontade com o pai, que era um capiau estranho, camarada de poucas palavras com quem eu nunca trocara mais de três frases por vez. Ele parecia não apreciar a ideia de dividir as atenções de sua filha única, de pai solteiro.

- Me leva? Não tive como dizer que não.


Eu acompanhava o Tricolor das Laranjeiras pelos jornais e pelo rádio de bolso que minha mãe ganhara em um sorteio de rifa, e aquelas três lindas cores, aliadas ao bom momento da dupla de ataque Assis e Washington, e de Delei, Tato, Romerito e dos demais, me deixavam otimista com a possibilidade do título. Quando chegamos faltavam vinte minutos para o jogo começar. Flamengo e Fluminense iriam se enfrentar, na batalha final pelo Carioca de 83. No primeiro tempo ficamos atrás do gol de Paulo Victor, espremidos no meio da muvuca, e não havia como não sermos contaminados por aquela euforia festiva, era como se eu me predestinasse para os acontecimentos que haviam de se desenrolar bem na minha frente. Fiquei quase todo esse tempo admirando as torcidas, as bandeiras dançando ao vento que parecia se alimentar da energia interminável dos torcedores. Lembro de ter olhado para Rosinha uma ou duas vezes, sinceramente estava tão inebriado que não me preocupei com ela. Apenas uma vaga imagem, em forma alucinante, me provocou um arrepio de pavor, sensação de correnteza me levando para longe do corpo, como se me desligasse do espírito, me desalmando, sei lá. Vislumbrei-me a seguir distorcido como se estivesse diante de um espelho convexo, redemoinho que misturado ao grito das torcidas, ao movimento frenético das bandeiras, me transformava em um ser pequenino, inseto insignificante... Dentro do campo, de frente para o gol, chutando a bola com uma força descomunal, a bola furando a rede, passando pelo olhar atônito do goleiro... Foi Rosinha quem me tirou daquele ímpeto quase mediúnico, com um estalar de lábios em minha face. O jogo ia começar, os jogadores já estavam em campo, distribuídos em seus lugares iniciais, como em um jogo de botão. O juiz apitou e a partida começou.


O jogo transcorreu emocionante. Recuperei-me do susto e de quando em quando observava Rosinha. Seu semblante era tranquilo, ela parecia ter sua forma própria de torcer, diria até que entendia como ninguém aquilo tudo, e a cada lance de perigo nos abraçávamos como se nos despedíssemos, estranho pensar aquilo, mas uma tristeza leve como brisa marinha vinha com esses afagos. Até que muito perto do final, depois de uma cobrança de impedimento, Delei lançou Assis antes do meio de campo, no ponto futuro, e o carrasco oficial de nosso arquirrival percorreu mais de trinta metros com a bola dominada, até que diante de um Raul aturdido, sem saber para qual canto pular, tocou a bola entre o corpo indefeso do goleiro e a base do poste esquerdo, para nunca mais voltar, abrindo para sempre os corações dos que clamavam pelo instante indelével daquela vitoria sobre o oponente.


Depois do gol veio o silêncio de um segundo, de um respirar, átimo confuso, porém, repleto de feliz insanidade. Lembro de pularmos como prisioneiros libertos no paraíso, como em um filme de Fellini, lembro de me sentir nu, recordo também que esse foi o último dia em que Rosinha teve manifestações além do real-tangível. Depois dessa conquista ela nunca mais foi ao terreiro de Mãe Lilian. Nunca mais - que eu me lembre - a vi possuída por qualquer entidade ou força maligna. Ela disse que suas possessões a partir daquele instante seriam ali, nos estádios, assistindo às partidas de nosso Fluminense. Nos sentimos então Tricolores de fato e de direito. Claro que até hoje me recordo daquele dia, e até onde minha memória permita, lembrarei.


Waldir Barbosa Junior


Imagem: internet


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