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Um Rio chamado Futebol

Atualizado: 5 de nov. de 2019

Coletânea de contos sobre futebol


Um Rio chamado Futebol
Um Rio chamado Futebol


Galera que curte literatura e futebol, a paixão transnacional, em meados de novembro publiquei pelo Clube de Autores uma coletânea de contos curtos, intitulada Um Rio chamado Futebol; tendo como pano de fundo o esporte um dia bretão, o autor que vos escreve tece reflexões e situações inusitadas onde as personagens orbitam, relacionando-se ao tema de inúmeras maneiras. Grande parte inspirados em Nelson Rodrigues e Machado de Assis, com uma pitadela de João Antônio, os contos tentam unir a ficção ao balípodo, descrevendo cenas e personagens pitorescas do locus cotidiano.




  • Autor: Waldir Barbosa Jr.

  • Gênero: contos (literatura nacional)

  • 204 páginas

  • Papel couchè 90 g

  • Ilustrado na abertura dos capítulos

  • Valor de capa: R$ 33,45

Para adquirir o livro clique no link e efetue na área restrita sua compra, o Clube de Autores cobra um frete módico de R$ 8,00:

 

Aperitivo: um dos contos do livro


A paixão desmedida segundo Ana de Souza


Um Rio chamado Futebol
Um Rio chamado Futebol

Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. Clarice Lispector

Ana de Souza era uma donzela de meia-idade no ano de 2014, tinha por volta de seus 39 anos. O tempo parecia ainda estar a seu lado, os cabelos de caracóis fartos e a pele pálida de suavidade incomum, de textura macia como veludo, imediatamente levavam quem a conhecesse a adjetivá-la como muito bonita, porém, de certo ar sinistro. E talvez, justamente por isso, a morbidez que Ana de Souza carregava na alma era algo até compreensível para quem se alongasse batendo papo com ela. A moça adorava frequentar cemitérios. Seu passeio aos domingos era ir a um que por acaso não conhecesse, mas uma vez a cada seis meses voltava ao que lhe parecia mais familiar e aconchegante: o São João Batista. Lá percorria as aleias como se um jardim de primavera fosse, cantarolando melodias fúnebres em tom de marchinha, feliz da vida por estar entre os seus. Quem a via e ouvia era taxativo em afirmar que ela sofria de problemas um tanto mentais, um tanto da alma, e que havia de ser feito algo, antes que a doença evoluísse e a cura se tornasse impossível.

Em dia desses, quando se aventurava pelo Caju, Ana sentiu que alguém a observava. Pensou que fantasmas, com os quais nunca tinha se deparado, seriam bem-vindos ao seu convívio. Mas sabia que não era de uma hora para outra, assim, sem um tempo de carreira, que ia ter a honra de avistar espectros, ou mesmo ouvir uma palavra que fosse, vinda do outro lado. Quem a admirava, como quem se delicia com a visão do ente querido, era um moço de seus cinquenta anos, os cabelos grisalhos cortados rente, a barba também tingida pelo tempo, desenhada a navalha como se um ser exótico fosse. A roupa, com um quê de antiguidade, também remetia a uma figura do século que se foi. Ana, em seu misto de delírio e realidade, viu-o se aproximar dela, esperando que fosse se desmanchar qual imagem de areia, mas qual nada, o homem pegou-a pela mão e sem apresentações a levou para uma dimensão em que um imenso gramado verde se estendia na frente dos dois, como um carpete novinho; as folhinhas recém-nascidas despertando a vontade de se jogar, feito corpo em uma gravidade diferente. De cada um dos lados havia uma baliza, da qual a moça já ouvira falar por alto, no mundo cão dos assaltantes de túmulos, dos trombadinhas do entorno dos cemitérios que frequentava, da realidade implacável. Havia também uma bola, materializada no centro do gramado, e à medida que Ana e seu guia se aproximavam dela, iam surgindo da terra, como em um filme de George Romero, pessoas vestidas de calção e chuteiras, cada uma sendo nomeada pelo acompanhante de Ana, que até ali não tinha dito uma palavra sequer. Os dois o tempo todo pareciam só usar o mediúnico poder de falar por silêncios; “Aquele ali - apontando para um rapaz de semblante fino, o corpo esguio e aerodinâmico - é o Preguinho, um grande atacante do Fluminense, que sempre jogou de graça pelo clube; aquele outro, de bigode, chama-se Leônidas da Silva, um diamante em forma de gente, inventou a bicicleta, uma linda jogada, que depois te explico melhor o que é; esse senhor que você vê quase ao seu lado - nesse momento Ana percebeu alguém sorrindo para ela - atende pelo nome de Nilton Santos, foi o mais talentoso lateral esquerdo que já se viu jogar. Esse que você vê com as pernas tortas - o atleta dava piques, parecendo louco para que o jogo começasse logo - nós o conhecemos por Mané, mas o mundo se lembra dele como Garricha; e aquele negro elegante ajeitando o calção e as meias é o Fausto, o “Maravilha Negra”, meio de campo de classe e toque refinado como poucos...” O homem continuou apresentando à moça de espírito fúnebre e paixão pelos mortos mais uma dezena de ídolos de vários times, chamando à razão para o esporte do qual Ana quase não sabia nada, como se uma nuvem de fumaça a rodeasse em vida, a alienando do mundo verdadeiro, onde o futebol tinha lugar destacado, motivo de discussões de cunho diversas vezes até filosófico.

Quando acabou de nomear um a um os que haviam sido convocados para mostrar a ela o que havia além-túmulo, a partida teve seu início. A cada jogada de efeito, a cada drible de Garrincha entortando quem estava do lado de lá do campo - também craques, não esqueçam disso - Ana, em pé à beira da linha lateral, ia se inebriando, ia se convencendo de que aquele jogo era por demais encantador e pertencente à esfera dos vivos. A alegria que ele proporcionava era mágica e transcendente, como pudera presenciar ali, no momento em que Fausto passou para Di Stefano - que acabara de subir para o time iluminado dos que se foram -, que cruzou à perfeição para Preguinho marcar de cabeça, o que não era seu forte, mas artilheiro que se preza não desperdiça a chance certa para concluir a gol.

O jogo, que foi de um tempo só, como em um jogo-exibição, encerrou com Ana deixando que uma lágrima percorresse sua face que um dia fora álgida, mas que agora, passados alguns anos, é o equivalente a dizer afogueada, pois depois que voltou, sem despedir-se do espectro que a levara à dimensão lúdica do planeta bola, ela não perde um grande clássico. Aprendeu tudo o que pôde sobre jogo de bola, sabe sem gaguejar quem joga aonde e em que posição atua, quantos gols já fez, sem falar que disserta sobre sistemas táticos como poucos. Ana agora é frequentadora fanática dos estádios, prefere dedicar seus domingos à celebração da vida, ao invés de passear por cemitérios.


Waldir Barbosa Jr,


Imagens: capa e ilustração do conto do livro Um Rio chamado Futebol

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