Uma história d'outro mundo
Atualizado: 4 de nov. de 2020
Conto de Um Rio chamado Futebol
Se pudesse viver novamente, na próxima vida tentaria cometer mais erros.
Jorge Luis Borges
Certo profeta sentenciara no meio do século passado: “os mortos um dia levantarão das tumbas!” Não espere o leitor viver para presenciar o apocalipse, mas de certo acabará por acreditar nos santos, nos milagres e nos mistérios inefáveis, até o fim desta história.
O despertador tocou pontualmente às seis, mas o dia não entrara pela fresta da janela como sempre. Nada aparentava a normalidade dos dias anteriores, e ao emprumar o corpo João percebeu que o dia não raiara. Não havia chuva ou tempo fechado, simplesmente não havia luz. O que era para ser uma manhã de segunda-feira era uma noite só, continuada. Ao esfregar os pés como de hábito, notou estarem frios como se ele tivesse dormido na geladeira. Afinal, o que acontecera?
Abriu a porta e tocou todas as campainhas do corredor: nada. Nem uma viva alma para responder aos seus apelos. Desceu as escadas - o elevador também não funcionava -, guiado pelas luzes de emergência que quando em vez piscavam para ele intermitentes. Antes de chegar à rua lembrou-se de pensar por que seu Farias, o porteiro, não estava em seu posto, e o silêncio afinal invadiu-lhe a mente de modo abrupto e devastador, esvaziando o que era dúvida, estabelecendo o que só poderia ser traduzido como desespero.
Atravessou a rua que aquela hora seria só movimento, mas tudo estava como se madrugada ainda fosse, e veio a ideia de ir em direção ao mar. Caminhou então as duas quadras que o separavam do horizonte, passou pelas lanchonetes e bares 24 horas, e diante das portas cerradas, teve vontade de tomar um café expresso e comer uns pãezinhos de queijo, mas não havia tempo, aliás, não havia nada, só uma nesga de pensamento. Passado, ideias que não se coadunavam, estaria ele em dimensão diferente, tal qual em um dos filmes de ficção de que tanto gostava, ou estaria louco, se debatendo dentro de sua mente?
Enquanto concatenava isso sentiu a brisa do mar estapear-lhe, alçando-lhe ao cerne de sua questão: ainda era ou não era um ser pensante, vivendo apenas um pesadelo real? Quis provar a si mesmo que sonhava. Cruzou a pista principal e a ciclovia como se o movimento frenético de um dia de domingo fosse. Nem teve o cuidado de olhar para os lados, antes de afinal colocar os pés na areia e correr em direção ao mar. Havia algo muito estranho, deveras estranho, e a cada passo o oceano mais longe ficava, à maneira de um binóculo invertido.
João, exausto, ajoelhou-se na areia e gargalhou como um ator louco encarnando a última personagem. Pensou no universo, pensou na família que não formara, pensou nos filhos que não tinha, e foi isso que o confortou, porque não havia por quem chorar, nem alguém para lembrar seus feitos, que sinceramente eram quase nada. Nenhum ato heroico, nenhum gesto moralmente louvável, a única coisa da qual se orgulhava era seu sentimento atemporal pelo Fluminense. Eram suas conquistas, eram os muitos títulos presenciados in loco, as muitas idas aos estádios ver o time vencer, perder, perder, vencer - empatar jamais! Ou se ganhava ou perdia, nada para ele era neutro ou indiferente, e, portanto, talvez este possivelmente fosse seu último pensamento, espécie de réquiem silencioso e honesto, que ele gostaria de ter como certo ao transformar-se em pó, ou em água. João não iria embora, não entregaria o corpo e a alma ao universo antes de ver seu Fluminense jogar a partida derradeira e decisiva, aquela que valeria mais que a Libertadores e o Mundial, valeria seu ajuste de contas com o universo. Lembrou-se que no trajeto havia várias bicicletas pelo chão, e ao dar meia volta veio o ímpeto da dignidade. Veria seu Fluminense fazer a partida que para ele ficara como que inacabada. O adversário pouco importava, o que contava eram as três cores, ou melhor, o inequívoco feixe de imagens coloridas que se abraçavam, materializando-se naquela linda bandeira tremeluzente, que ele outrora carregava em dia de jogo, qualquer jogo, que para ele era sempre um clássico.
Pedalou como se disputasse a volta da França, e ainda que não houvesse vento soprando, João viajou nas asas da Panam, pássaro sem asas, procurando o abrigo dos seus.
Viu no caminho de volta um Maracanã antigo, a geral lotada, as arquibancadas tomadas, todos de pé, aplaudindo. Curiosamente o campo estava vazio, e ao avistar o placar eletrônico apontando o escore e o tempo de jogo, concluiu que o jogo encerrara, e que 1 a 0 para o Tricolor das Laranjeiras era o resultado final...
Ao chegar ao destino, sentiu o corpo reconfortar-se. Aninhou-se à alma com a certeza que esse gesto, volátil e silencioso, iria acalmá-lo, não se sabe por quanto tempo, certamente só até a próxima alucinação.
Waldir Barbosa Junior
Conto que faz parte do livro Um Rio chamado Futebol, publicado em 2019 e à venda no Clube de Autores:
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