Uma vela para Ògúm
Atualizado: 16 de mar. de 2023
Um conto de fé
Como filho de Ogum teria tido o direito de lhe fazer a pergunta?
Com quem estão os Orixás, Viagem na Irrealidade Cotidiana, Umberto Eco
Era uma quarta-feira do ano de 2021. Pediu para sair do trabalho mais cedo, era dia de oferenda. Atravessou em passo acelerado a Buenos Aires, cruzou a Rio Branco de forma até mais distraída do que o habitual. Lembrou-se, minutos antes de descer a escada rolante da estação Uruguaiana que não havia comprado a vela, "Putz, dei mole, a vela!", e voltou, rápido pela Senhor dos Passos atrás de uma casa de santo que vendesse. "Lembro de vender na Uruguaiana", e foi mais que apressado, quase correndo, atrás do artefato fundamental para a oferenda. Encontrou a loja, um dos donos começando a descer as portas de aço. Comprou logo um maço para as próximas, sempre há uma próxima vez, pensou, ansioso por pegar logo o metrô em direção à estação final, Pavuna. De lá mais uns 20 minutos de Uber até o terreiro de Mãe Célia de Oxóssi, onde dar-se-ia seu ato de devoção.
"Filho, vejo aqui muita dificuldade pela frente, fora as que já teve", disse, de forma direta, Mãe Célia; eu estava mais que nervoso, estava batendo as pernas e os pés feito um adolescente saindo de casa sozinho pela primeira vez para comprar pão. Eu passara extremos perrengues na existência, sempre havia sido assim, com breves períodos de bonança. No mais, era tempestade na veia... Desde moleque, pai morto, mãe ralando para o nosso sustento, dificuldades de migrar da zona sul para o subúrbio cruel e impiedoso, onde só morava bicho-papão (era assim que me descreviam Inhaúma, onde fui parar, uma terra de aborígenes te olhando de soslaio, prontos para canibalizá-lo), onde não havia leis nem livros, nem ventos vindos do mar, onde o calor era uma constante, onde neguinho estava sempre pronto para te atropelar, como se isso não fosse comum em todo lugar, descobri depois.
Minha primeira escola quando nos mudamos ficava no Engenho da Rainha, um bairro colonial decadente limítrofe à Inhaúma. Lá era tipo uma sucursal de um inferno ainda mais amedrontador, havia um rio cortando o pequeno sub-bairro, havia ainda mais gente perigosa, garotos prontos a te zoar e escorraçar por qualquer motivo. Eles inclusive certa vez atravessaram a fronteira e invadiram o condomínio onde morávamos, o muro baixo nos fundos facilitava a entrada dos meliantes. Minha mãe havia ido à zona sul entregar umas costuras - era costureira, era assim que nos mantinha unidos -, meus irmãos haviam acompanhado, normalmente eram eles que iam com ela. E eu, na ingenuidade de meus 12 anos, dava mole batendo uma bolinha com uns colegas que havia feito. De repente, de todos os lados, como criaturas hostis e ferozes rastreando a presa, vieram em minha direção aos brados de "me dá a bola; se não a porrada vai comer!!!" Eu de primeira tomei um susto, pensei, já era, perdi, e quando achei que além de tomarem a dente-de-leite que minha mãe havia me dado levaria uns catiripapos, uma vizinha do bloco defronte ao em que morávamos desceu aos gritos, e devido à opulência que tinha dispersou os moleques rapidinho.
O choque de cruzar o túnel Rebouças na época foi punk. Um garoto criado a leite de pera, tendo que se adaptar a uma nova realidade, que no fundo não era tão hostil, ou não mais do que a que surgiu anos depois, foi algo a se considerar na época, mas que não teve importância alguma com o caminhar do tempo, ao contrário, o tornou um forte, capaz de entender e interagir com a nova realidade.
Diante dos alumbramentos de Mãe Célia, de suas inquestionáveis e sinceras sentenças, ele começava a entender o mundo e como funcionava, quais eram os mecanismos de contrapartida, que uma vela levava a um ponto, incerto era fato, que uma oferenda de certo modo levava a outro patamar de devoção, que o èje derramado sobre o alguidar, em um jato rubro, tendo como fundo os cânticos iorubás, era um dos meios de fazer chegar ao Òrún suas preces e saudações a Ògúm, seu primordial orixá. Estava vestido de calçolão e camiseta Hering branca, acabara de tomar um banho de abô, uma mistura de ervas maceradas tendo Ossayn como orixá invocado. Seu corpo estava limpo e preparado, pronto para o que viria durante a noite. Ficaria em vigília, acompanhado de umas duas ou três mães pequenas. Durante esse tempo, uma vela acesa seria seu farol; Mãe Célia, antes de se recolher, disse a ele: "Pense em coisas boas, menino, peça o que quiser, mas lembre-se do eterno retorno"; ele jamais esqueceria aquela frase, que pontuava a lei que muitas religiões apregoavam, mas em verdade pouco se via no pragmatismo dos dias.
Teve vários momentos de epifania, imaginou ter visto o pai morto, seu espírito estava vestido de um manto da cabeça à ponta dos pés, mas ele não sabia por que tinha a convicção de que era o pai, que morrera quando ainda era um moleque de 12 anos, de forma trágica. Ele não disse palavra, na hora veio-lhe à mente o conto de Guimarães Rosa em que o pai sumira, e anos depois era avistado em uma canoa, subindo e descendo o rio. Ele pairara na terceira margem, e seu pai era aquele pai, ele estava certo disso.
Em outro momento, já perto do amanhecer, acordou sobressaltado, ou nem dormira, não sabe ao certo, mas poderá afirmar ad eternum ter confraternizado com Ogum em pessoa! Era um negro robusto, mais de dois metros, a pele de ébano magnífica, os olhos saltando das órbitas como que para desvendá-lo, a boca sem dizer palavra o amedrontara, achou que seria admoestado, afinal, caíra no sono, vencido pela beberagem que ingerira em um ago de barro. Tinha um gosto doce, ao mesmo tempo um leve amargor, que havia provocado um incrível efeito de transe, levando-o para uma dimensão entre o Àiyé e o Òrún, e isso era bom, era apaziguador e instigante, ele não conseguiria definir.
Ao acordar já passava das dez. Mãe Célia o olhava serenamente, com um sorriso de pitonisa na face, e ele sentiu-se abraçado e feliz. Ela vestia uma túnica de tecido estampado, com motivos alegres, e ele não saberia dizer o que exatamente, mas ele era agora um homem, não mais um quase homem. A vela acesa para seu orixá de frente queimara até o fim. A cera derretida em um pequeno alguidar fora lhe dada como parte dos talismãs a que tinha direito. Mãe Célia não disse nada, apenas prosseguiu no ritual. O couro do animal imolado já fora arrancado com cuidado e agora enfeitava uma das paredes do barracão. As vísceras e órgãos internos já pertenciam a Ògúm. Os búzios lhe disseram através das mãos de Mãe Célia que a oferenda havia sido benquista, que agora "Esperasse o tempo que fosse, que a prosperidade viria no seu tempo", "que desse sequencia aos trabalhos, que Ògúm seria dadivoso com ele".
Ao despedir-se de cada um dos presentes com um mojubá e ter como resposta um motumbá percebeu que tudo aquilo faria parte intrínseca de sua vida, e fugir daquele destino poderia não ser o melhor a fazer.
Waldir Barbosa Junior
@anfetaminadialetica
Imagem: arquivo pessoal e internet
Obrigado mademoiselle Ariadne.
Parabéns pelo ótimo texto!
Obrigado Miss Waléria pelos comentários. Saudações literárias.
Texto muito leve e ao mesmo tempo realista , me levou de volta ao universo dos terreiros de candomblé.Lindo conto.