Rituais de Perfídia - Crimes em série na Grécia Antiga - Aperitivo
Primeiro capítulo
Tendo dedicado boa parte de minha existência à observação do espírito e da constituição humana, sobretudo dos princípios éticos, políticos e sociais que os governam, foi com particular interesse que me deparei no primeiro ano da centésima Olimpíada [1] com os terríveis fatos que narrarei a seguir. De alguma forma tenho esperanças que eles sirvam para o conhecimento da natureza dos homens, objetivo que sempre busquei:
As tempestades daquele ano seriam mais impiedosas do que nunca, os ventos do Aegean [2] haviam de castigar toda a costa de Athena. O frio gélido adormecia o espírito, bloqueando os pensamentos. Para exercitar a razão eu me encontrava debatendo com Theofrastus, aluno dos mais dedicados, quando um mensageiro chamou-me pelo nome, entregando uma carta. Antes de abrir, notei que não havia remetente, o que induzia a uma determinada urgência ou a algo bastante confidencial. Em seu interior, porém, antes de selá-la com cera de carneiro, o autor assinara de forma firme, onde se lia: Hermias. Imediatamente lembrei de meu amigo, que agora residia em Assos, província localizada na Eólida [3], sudoeste da Ásia Menor. Ele buscava meus modestos préstimos como conselheiro, afirmando que “... questões administrativas e de ordem política tornavam imprescindível a vinda do velho amigo”. Concluí que havia bem mais que isso nas entrelinhas. Fiz as recomendações que julguei necessárias a Theophastus na condução da Escola, achando que minha ausência não excederia duas ou três dezenas de dias, reuni algumas provisões e pertences e partimos.
A viagem durou sete dias por mar aberto, tempo mais do que suficiente para cumprirmos nossa travessia, antes que as intempéries do período chegassem aos oceanos. Saímos do Piraeus [4] na décima-quinta manhã do mês de pyanopsion [5], e o que posso relatar é um enigmático episódio, um fato impiedoso da natureza, que talvez um dia possa ser elucidado por um dos oráculos de Delphos [6]: pelas
características daquele período, os ventos deveriam se manter fortes e constantes, nos levando o mais breve possível ao nosso destino. Porém, já se passavam três dias e três noites que eles não nos abençoavam, deixando a velha embarcação como que ancorada em pleno mar alto. Minha ansiedade tangia o mau presságio, a atmosfera só era comparável a uma tragédia de Sófocles. Tenho a fatal impressão que mais um dia, com a comida e a água de beber acabando por completo, este relato seria somente ficção, escrito por algum poeta homérico de mente rica e tenebrosa.
Era o final do quarto dia sem ventos. Tamanho era o calor, que a maioria da tripulação se encontrava no convés, à exceção dos escravos, que se revezavam mantendo o navio pronto para singrar com a primeira lufada de alguma corrente. O céu se encontrava transparente como pele de hidra, os astros iluminando léguas a nossa frente. Eu tentava escrever algumas linhas, refletindo sobre a existência - talvez perguntando aos deuses se nosso tormento teria seu fim -, quando fomos atingidos por uma força sobre-humana, como se o próprio Zeus arremessasse seus raios sobre nós. Veio então um pavor crescente, me expresso dessa forma porque uma onda de inimigos pareceu vir por todos os lados, de tal modo que descemos pela popa da embarcação. Parecíamos ser arrastados por parelhas de enormes cavalos marinhos, sob o tridente de Poseidon [7]. Contudo, todos os que lá estiveram juram até hoje terem avistado Caríbdis [8] emergindo do Egeu, nos puxando para o centro do redemoinho... Alguns foram arremessados no mar sem a menor chance, e quando eu já deduzia como certo o desfecho imutável, a nave subitamente foi perdendo velocidade, voltando à posição original. Ela passou então a mover-se na direção de Assos, e nossa iminente tragédia, iniciada em noite alta, teve seu fim da mesma forma abrupta com que começou. Éolos [9] assumiu novamente o controle e pudemos cumprir nossa missão.
1] Correspondente ao ano de 347 a.C.
[2] Egeu; mar que ligava a Europa (onde se situa a Grécia) à Ásia, cujo nome se atribui ao Rei de Athena, Aegean, que
julgando seu filho derrotado pelos inimigos, precipitou-se nele.
[3] Atual cidade de Behramkale, sudoeste da Turquia.
[4] Principal porto e base naval da Grécia, situado ao sul de Athena.
[5] Correspondente ao início do mês de novembro ao início de dezembro no calendário atual.
[6] Local famoso por abrigar o santuário de mesmo nome, cujos sacerdotes eram responsáveis por dirimir as dúvidas da existência.
[7] Deus que dominava os oceanos, porém com fortes ligações terrestres. Embora em seu domínio estivessem basicamente as vagas, as tempestades e os animais marinhos, era também capaz de provocar terremotos e fazer brotar nascentes.
[8] Monstro mitológico com cabeça de mulher e corpo de serpente que atacava as embarcações em alto mar.
[9] Deus conhecido como “O senhor dos ventos”.
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